22 dezembro 2013

Sob o céu de São Paulo

Escrevo-te para contar que por aqui as nuvens são carregadas - creio que tanto quanto eu. Durante o dia são pálidas, tornando-se negras à noite. Parecem guardar algo pesado demais para que permitam deixar ir embora simplesmente. No céu, alojadas livres de uma sequência lógica, elas me impedem de ver. Ver o que há do outro lado, o que fica lá longe. O céu, então, não é o mesmo.
Há solidão sob o céu de São Paulo. Em contrapartida, há eu em você. Nos cheiros e esquinas, nas ausências e madrugadas. Moram consequências de um até logo desajeitado, mas moram também suspiros trêmulos de um prospectado reencontro. Aluguei, por estes dias, a parte de mim que precisava ser re-conhecida. Paguei caro. Paguei com lágrimas que escondi debaixo do travesseiro para que você não visse mesmo de longe. Paguei com faltas, paguei com ecos. E nem parcelar a saudade me deixaram.
Entendo que o céu é outro porque certas vezes só uma tempestade forte é que nos faz recomeçar. Me deram um céu sujo para que eu precisasse reunir o necessário para borrá-lo de azul. De Sul. Sei-lá-quem me obriga agora a enxergar do outro lado destas nuvens poluídas. Para, assim, encontrar o mesmo céu que você.

04 dezembro 2013

Guri poeta

A noite resolveu me consumir quando você foi embora. Tranquei a porta, caí de joelhos, tentei imaginar o que seria dali em diante, e ao mesmo tempo rebobinei os últimos minutos daquele episódio para que eu entendesse o que havia feito conosco. Naquela noite eu estraguei nosso roteiro, atropelei as nossas falas, deixei os segundos finais com um silêncio constrangedor.
Enquanto eu me debatia internamente, agradecia por ninguém ver a minha fraqueza. Péssimo, aquilo foi péssimo. Se tivéssemos espectadores, todos julgariam aquele episódio da nossa série como o pior. Tão ruim quanto a primeira rima de uma música rejeitada, roubada, amassada e picotada. Quem gostaria de ver o mocinho saindo porta afora sem dizer nada, pegando aquele táxi sozinho e terminando a noite sem nem trocar um olhar com o seu grande amor?
Guri, o que você tá fazendo? - a noite sussurrou para mim.
Balancei a cabeça como se aquilo servisse como resposta, pois eu nem mesmo tinha uma. Caminhei mais dramático do que qualquer cena que eu jamais pudesse fazer. Faltou força, energia, faltou a certeza. Debaixo d'água corrente, agradeci por ali as lágrimas se camuflarem. 
Desde então, passei a me questionar: Qual é a credibilidade de um poeta? 

08 novembro 2013

Ensaiando (saudades e) saídas

Essa semana me peguei fazendo as malas, e só depois da terceira camiseta enrolada me dei conta de que não havia um porquê. Nenhuma viagem programada, nenhum bate-e-volta de fim de semana. Entretanto, havia uma vontade de sair. De qualquer lugar que fosse.
Passei a terça em casa, atestei qualquer coisa. Mas, percebendo agora, não era assim tão simples. Passei o dia mais pra lá do que pra cá, enrolado em um cobertor em plena primavera. Na quinta, fui trabalhar com muito sono. Como alguém que não dorme há semanas, sendo que eu havia dormido mais que oito horas na noite anterior. A vontade, fosse em casa ou no trabalho, era só uma: sair por aí.
Pesquisei no Google se é possível cansar desse mundo e querer outro, e até pesquisei o valor de uma diária em Marte. Pela primeira vez, nenhum resultado satisfatório surgiu na tela. Saí, de novo. Do Google direto para a minha pilha de CDs. Coloquei para tocar, como se fosse ação rotineira, e um ou dois cantores me fizeram ir para longe, sair do quarto, sair de qualquer parte de mim. Desmembrei meus sentimentos e reagrupei meus ossos, mas nem assim eu julguei ser suficiente.
Amanhã, então, vou procurar sair da cidade. Vou em busca de uma significância desaparecida há umas três semanas, pois quem sabe é esse o motivo pelo qual eu queira fugir de todas as coisas simples. Como cartaz de cachorro perdido, eu pretendo colar em cada poste a nossa foto. Minha e tua. A mais cafona, é claro, pra você sentir raiva por ter saído para sabe-se lá onde. No topo, letras garrafais. Desaparecidos: eu e você. Vou sair pras ruas, vou sair pras luas.
Objetivo? Nos encontrar.
Recompensa? Hm, podem levar todo o meu dinheiro se quiserem. Quanto à nós... Ah, nós vamos nos arrumar. Pra sair.

É que de tanto você sumir, eu acabei não me encontrando mais.

05 novembro 2013

O tesão da coisa

Almoço de família é sempre um evento. Mesmo contando com uma certa parcela de previsibilidade, onde você acha que sabe exatamente como tudo irá acontecer, você na verdade nunca acaba acertando o que vai (de fato) acontecer. A exemplo, o almoço do último domingo. Antes mesmo de iniciarem o festival de boi no espeto, minha tia se levantou para anunciar que havia se demitido e que estava indo viajar.
No começo não entendi o porquê, ao certo, da colocação. Quero dizer, naquele exato momento. Mas aí percebi: a minha tia estava fazendo o que tento sempre fazer, ou o que muitos de nós têm tanto medo de colocar em prática. A história, no entanto, foi explicada por ela: ou continuava na mesmice por mais sabe-se lá quantos anos, ou dava um fim, pedia as contas e se mandava daqui. Bem, ela preferiu se mandar. O destino? Londres. Dezessete dias longe de todo mundo, de qualquer rosto conhecido, de qualquer stress. Minha tia escolheu ser feliz.
E a questão da coisa toda é essa. A vida se resume a autopermissões esporádicas, sempre existe um momento em que permitir-se passa do opcional ao obrigatório. Para todos a rotina é senso comum, mas isso não significa que ela precise ter um sentido negativo. É preciso ter vontade e prazer de se fazer, dia a dia, algo que agrade. Seja o trabalho em si, seja o trabalho em paralelo que um dia vai ganhar peso e se tornar algo sério. É preciso sentir tesão pela coisa. Jogar a papelada toda pro alto, burlar um atestado médico uma vez na vida, atirar o despertador na parede - tudo muito bom, tudo necessário.
Minha tia estava infeliz. Vez ou outra, todos nós estamos. Ela abriu, enfim, a gaiola para qualquer nova possibilidade, para qualquer novo "amanhã" que venha a se tornar "diariamente".  Pude ver nos olhos dela um misto de medo com "até que enfim". Nem sempre é hora para se dar ao luxo de dizer tchau e nunca mais voltar para aquela mesa de trabalho que te atura por mais tempo que deveria. Mas sempre, sempre mesmo, acaba existindo um domingo para se pensar no dia seguinte.
E, com ele, um almoço de família.  

13 outubro 2013

Escova de dentes solteira procura

Foram muitos os meses em que procurei um par para a minha escova de dentes. Tudo bem que ela já não estava muitíssimo bem conservada - as suas cerdas há tempos haviam deixado a maciez de lado -, mas a minha escova azul merecia uma companhia para o seu pote de porcelana branca em cima da pia. Afinal de contas, ninguém merece viver sozinho. Nem mesmo as escovas de dentes.
Nunca quis demais: nada de uma Colgate Master Plus 360º com cerdas coloridas, extrafinas e com um preço absurdo. Escova serve para brigar com os restos de pipoca, tem uma vida útil deveras curta, merece ser trocada de três em três meses. Então, naquele momento, o que eu queria era uma escova simples, discretinha. Cheguei até a levar a minha para o supermercado, fizemos a ronda na sessão de higiene, mas nada. Tudo muito, tudo demais. Não se fazem escovas de dentes como antigamente.
Ficamos só. Eu e a minha escova. A singularidade no pote de porcelana sempre representou muito mais do que a minha vidinha-de-uma-só-pessoa. Ter só uma escova de dentes no banheiro de casa significa solidão. E, para falar bem a verdade, todo mundo quer encontrar o par para a sua escova.
Eis que chega, de mansinho, uma companhia que nem de longe esperava. No fundo do carrinho de compras, perto do detergente, lá estava ela: uma escova verde. Simples, bonita, o suficiente. Chegando em casa, apresentei para a dona de meus dentes a sua nova companhia. Na verdade, coloquei-a como quem não quer nada junto à minha, e então ambas passaram a dividir o pote de porcelana. Foi, no começo, um encontro meio que às escuras (eu desligava a luz do banheiro para deixá-las a sós). Aos poucos elas foram de conhecendo, e certo dia chegaram até a se cumprimentar - entrei no banheiro e as peguei no flagra, uma colada a outra, em um beijo discretamente quieto. 
Atrelado a isso, enfim, minha cama também recebeu visita. Afinal de contas, ninguém merece viver sozinho. Nem mesmo as escovas de dentes.

10 outubro 2013

Meu pseudonamorado gay

Novembro. Estávamos no início da nossa coisa. Coisa porque não era namoro, coisa porque não era ficada. Era coisa. Coisa formada por dois indivíduos: eu e o Juan Rodrigues. Juan Rodrigues e eu (tem quem diz que o burro vai na frente). Para mim, naquele momento, ele até que era legal: usava uns coturnos diferentões, pintava os olhos com pincel e usava bandana na cabeça. Bons tempos. Hoje em dia paro e penso: por que diabos eu coisei (para não dizer namorei/fiquei/afins) com um gótico axézeiro?
Não que ele gostasse de axé. O problema era a bandana. Na verdade, Juan Rodrigues curtia mesmo um rock pesado, daqueles que misturam gritos à gritos e resultam em mais gritos ainda. Eu, em contrapartida, nunca vi música naquilo mesmo. Quando entrei no seu apartamento pela primeira vez - um misto quente imobiliário na zona sul -, não soube de cara no que eu estava me metendo. Os pôsteres dos caras do KISS (desculpem-me se houver outra banda que também pinta o rosto, porque aqueles caras estavam assim, então eu estou chutando que era o KISS), os CD's das bandas desconhecidas, um urubu empalhado no meio do quarto... Um urubu empalhado no meio do quarto(!!!) Será que era para unir o seu lado gótico ao clima de cemitério?
No fim de tudo, eu me fodi. Juan Rodrigues deixou de ser o cara-misterioso-que-sentava-perto-da-janela-durante-a-aula-de-Psicologia-da-Infância para dar espaço ao cara-que-pintava-o-olho-mais-do-que-eu (ele até roubou o meu lápis). Acho que ele sente falta dos meus peitos, e só. Ou talvez do meu batom vermelho que combinava com suas camisetas de banda. Já eu... Bem, eu fiquei aqui. Na mesma. Parada no outro extremo da sala de aula, procurando outro cara para me ferrar. Rotina feminina é assim - a gente tá sempre em busca de um bom canalha pra amar, acabar e depois sair contando.

OBS: Juan Rodrigues me procurou de novo semana passada.
OBS 2: Ele queria saber a marca do meu lápis de olho.

(Psicografado por qualquer indício feminino que resolveu visitar meu íntimo essa noite)

08 setembro 2013

Suelen Mapelli

Eu e o meu pai costumávamos andar de carro todas as manhãs. Bem... Eu, o meu pai e o rádio. A vista da BR-116 logo depois das 7 sempre foi quase a mesma (salvo os dias de chuva): dois sentidos, três vias e um cruzamento. Bem cedo tem quem vá para o trabalho, tem quem vá para a Universidade, ou também quem só saia de casa para levar o filho na escola. Nem para todos a trilha sonora é a mesma - creio que alguns se restringem ao tic tac inaudível da própria vida. Para mim (e para o meu pai), entretanto, a voz de bom dia era sempre da Suelen.
Não me acorde assim, Suelen! - eu pensava diariamente enquanto escutava a sua narrativa acerca dos assassinatos, assaltos, ou qualquer "ato ou alto" da cidade. "Dois homens suspeitos foram apreendidos na madrugada desta quarta-feira pela Brigada Militar. Um veículo suspeito foi encontrado nas redondezas do bairro Kayser na última madrugada." A tragédia é sempre a mesma, só muda de rua. Nunca dei, por isso mesmo, muita importância para a tal repórter que embalava o começo das minhas manhãs. Porém, agora, eu sinto certa falta.
Sinto falta pois troquei de emprego. Mudei de rumo a mando do destino, mesmo não sabendo a sua forma e se deveria tratá-lo por esse nome mesmo. Já faz duas semanas que algumas coisas ganharam nova textura, e ouso dizer que todas as mono se transformaram em poli - principalmente a cromia. Enquanto isso, estou me dedicando, edificando o prédio mais alto que já me propus a construir (um daqueles que nem mesmo conseguimos ver o topo). Contudo, houve uma quebra. De sentido, de caminho, de planos. A rota agora é outra.
Por conta do Seu Destino (alguém tem o seu endereço, por favor?), que recortou os meus mapas e conectou vias transversais a fim de sabe-se-lá-o-quê, os meus "dias de rádio" agora chamo de "dias de tevê". Não ouço mais a repórter, mas agora eu a vejo. Na verdade, vejo o que ela vê. Ganhei, digamos, certo tempo para ver os dias por dentre uma janela emoldurada pelos meus próprios olhos. Vejo tudo, vejo o mundo, vejo o que antes só ouvia. Prazer, dia a dia: eu sou o seu novo telespectador.
Até quando, não sei. Amanhã mesmo pode ser dia de mudança. Pode ser dia de coisa nova. Pode ser dia de qualquer coisa. Dentre tantas dúvidas que prefiro manter em volume baixo, uma só pergunta se destaca: Suelen Mapelli, como vai você?

13 agosto 2013

Um daqueles dias

Hoje é só mais um daqueles dias em que nada se move. A meu ver, o mundo freou por estar cansado da gente. Tudo então está quieto, tudo acabou se tornando refém. Do tempo, dos tempos. De si mesmo.
Lá fora o céu não ganha cor nenhuma, a chuva martela sobre tudo aquilo que está estático - e a essa hora podemos contabilizar aqui as pessoas também. As árvores são as únicas que dançam, obrigadas por um vento carrasco que resolveu castigar todos nós. No relógio os ponteiros não passam, o telefone não toca, a caneta escreve só isto e aquela pessoa não aparece para salvar o dia. Nos livros as linhas estão embaralhadas, mas os olhos são os reais culpados: pendem para baixo, estão em desordem, enxergam o pouco-tão-pouco que, mesmo sendo pouco, alguém esqueceu de arrumar. Quanta bagunça.
Nos ares, os ares são artificiais. Aquecedores são mantas invisíveis para proteger os desprotegidos. Nos pés, o piso é frio. Cada passo no chão despido despe a alma que no dia de hoje se despede - Despedida! Como não falar dela em um dia como hoje, quando todos estão indo embora sem nem mesmo terem chegado? Por favor, fiquem um pouco mais. O café vai voltar a pingar na xícara quando o mundo estiver de volta ao normal. Ah... O normal. Qual é a engrenagem que mantém o mundo preso naquilo que agora chamo de diferente? Pois eu deveria gostar dele.
Mas não gosto. Não desse diferente.
Não gosto porque hoje ninguém apareceu a não ser a chuva e o que imperou foi o sono, sem falar da tristeza pela ausência que nunca esteve tão presente - quanta bondade a sua, fiel companheira. A trilha sonora hoje foi o tique-taque, um desfalque de meu próprio piripaque por estar vivendo bem assim. Hoje foi um daqueles dias em que encontrei nas ruas, encrostada em paredes nuas, esta falta de não-sei-o-que-lá. Convivi hoje, então, com uma "terça-feia", tão feia que nem quis ver pela frente. Não quis porque no dia de hoje, simplesmente, todas as bocas ficaram mudas.

Ainda bem que me resta a escrita.

12 agosto 2013

Entre caixas e caixões

Ela tirou do armário uma grande caixa que guardava uma bota da cor preta. Abriu a tampa, analisou o papel seda que envolvia o forte cheiro do couro impregnado no sapato. Pensou, avaliando consigo mesma o tamanho da caixa. Era grande, talvez 80 centímetros fossem demais para o que ela precisasse. Voltou a olhar para o armário. Haviam várias caixas menores ali que poderiam servir. Entre caixas e caixões, ela optou por uma caixinha.
E nem era tão caixinha assim, pois dentro dela cabia um par de sandálias horríveis que nunca antes havia usado - tinha sido presente dele, é claro. Jogou então a caixa em cima de sua cama, abriu a tampa e encarou aquele quadrado de papelão como se esperasse por uma resposta. Em silêncio, ela soube que dali não sairia mais nada. Nem tinha o que sair. Então, como que dizendo para si "eu realmente preciso fazer isso", ela começou: jogou uma montoeira de coisas ali dentro. Era como se a caixa ansiasse em receber qualquer donativo de uma partida súbita. Dentre os itens escolhidos, cuidou para não resvalar e deixar a si mesma cair lá dentro.
Primeiro foi a escova de dentes que ela havia comprado especialmente para ele usar nas noites em que dormisse na sua casa. Era amarela, e sem qualquer esforço ela lembrava que não havia sido uma boa escolha: as cerdas eram duras demais. E, sim, ela já havia escovado os dentes com a escova dele, óbvio - início de paixonite, sabe como é. Logo depois ela arremessou um CD do Legião Urbana, e por cinco ou dez minutos ficou pedindo perdão para Renato Russo, que naquelas horas de nada tinha a ver com a história, por mais que tivesse embalado alguns (des)encontros do casal. Outros itens acabaram por cair na caixa de sapatos sem tanta dificuldade: o primeiro anel; a carta exageradamente inflamada que ela escrevera para nunca entregar; o botão da calça jeans que ela arrancou quando o conheceu por completo pela primeira vez. "Tudo tralha", pensou.
Tampou a caixa depois de um par de horas. Lacrou com fita adesiva e uma trouxinha de lágrimas que acabou despencando daqueles olhos de abandono. Bem ao certo não sabia o que fazer, porém ao mesmo passo sabia o que não deveria fazer: devolver tudo aquilo. A caixa guardava memórias suas, momentos escolhidos e salvos unicamente por ela. E, bem, ela sabia que o que menos precisava era de um reencontro. Entre caixas e caixões, ela escolheu o último e preferiu de uma vez enterrá-lo.

07 agosto 2013

Toda mulher

Toda mulher tem que cortar o cabelo bem curto em algum momento da sua vida. Tem de haver um desprendimento, uma renovação, um bota fora. Toda mulher tem que se permitir um penteado diferente, uma cor ousada – do vermelho fogo ao loiro desbotado –, uma espécie de licença poética mesmo que seja apenas capilar: "hoje eu me permiti ser outra pessoa".
Toda mulher precisa de um disfarce que só ela saiba que existe. Pode ser de mulher fatal, dominadora, compulsiva ou até mesmo controladora - o personagem só aparece quando ela quiser. Toda mulher, aliás, deve precisar de uma outra mulher, seja irmã, mãe, prima ou até mesmo empregada doméstica. Toda mulher precisa de vários "amores da minha vida", mas só um anel de compromisso. Toda mulher deveria experimentar um esmalte diferente a cada nova ida à manicure, fugir do pretinho básico de vez em quando e beijar quem tiver vontade, sem precisar imaginar se o cara é um sapo a ponto de virar príncipe ou não.
Na verdade, toda mulher tem que ter em sua vida um homem cafajeste. Mas que ele não dure muito, por favor! Que todas tenham um "homem caminhão de mudança", daqueles que recolhe os espaços vagos e inúteis e leva embora - junto consigo, é claro. Toda mulher tem que conviver também com um homem de bolso vazio, pois essa é uma boa forma de se valorizar o próprio dinheiro (afinal, depender de homem ninguém merece). Também é aconselhável que toda mulher tenha um romance com um cara mais novo, um jovenzinho de 18 quando ela tiver 30, ou um de 20 e poucos quando ela já estiver na casa dos 40. Nisso pode existir um resgate, e até mesmo uma confirmação de que nunca é tarde para se fazer as tais "coisas dos jovens". Afinal, ser mulher é ser atemporal.
Toda mulher deve ir dormir uma vez na vida sem se preocupar com a louça suja na pia da cozinha e no dia seguinte sair de casa sem arrumar a cama. Toda mulher tem de arriscar uma hora ou outra - seja investindo grana em um negócio próprio ou apenas mudando o pão integral pelo francês uma só vez na semana. Falando nisso, toda mulher deveria esquecer a palavra "dieta" semana sim, semana não. Dessa forma dosadora surge um perfeito equilíbrio, não?
Toda mulher deve esperar flores. Toda mulher deve fazer algo para que possa esperar flores.
Toda mulher deve sair para se divertir com as amigas, toda mulher tem de ter um amigo gay. Toda mulher tem que ser mais corajosa que o "homem da casa", toda mulher tem direito de não gostar de rosa e filme de romance. Toda mulher tem "aqueles dias", então, por favor, afaste-se! Toda mulher tem um sapato a mais no guarda-roupa, um batom de cada tom e alguma peça no armário na cor nude (e nem tente imaginar do que isso se trata). Toda mulher deve querer alguém, mas toda mulher tem que lembrar que é autossuficiente e que Adão foi mero reprodutor sexual figurante.
Toda mulher, enfim, tem que se permitir, se libertar, tentar algo de diferente. E isso só começa com o principal: em algum momento da sua vida, toda mulher deveria cortar o cabelo bem curto.
E olha que eu nem sou mulher para estar afirmando.

21 julho 2013

Pertença

No céu, um rasgo discreto salvava o dia de uma palidez bem-vinda. Como se quisesse mostrar presença, o sol se espremia e ultrapassava o rombo celeste no intuito de alcançar o topo dos montes que cercavam a estrada de fim de domingo. Naufragados noutro mundo que não aquele, meus pensamentos tentavam dar nome às emoções. Em meio a um crepúsculo não planejado na volta para casa, eu pertencia.
No som, Maria Bethânia estava fazendo pirraça com o meu destino. Travestida de poetisa, seus versos me serviam: "Olha, você tem todas as coisas que um dia eu sonhei pra mim". Sim... Olho, Maria, eu olho. Eu olhei. E, no banco de trás, o que encontrei foram os meus dedos fazendo pouso forçado noutra mão, achegando-se e enlaçando noutros dedos. Trocaram-se sorrisos após o pouso de emergência, trocaram-se certezas de um já conhecido sentimento, porém ainda sem nome. Como colônia fina sem embalagem, mas que sabe exatamente que pertence à ala da perfumaria. É, o meu lugar é aqui.
No sul, o vento frio ditava o tom do nosso romance regado à chocolate mentolado e por vezes cítrico. Mas que graça é essa questão que me sequestrou o peito e sufocou-o com uma nova descoberta, então. Quem és tu, pertença? Pois bem, agora sei, e muito bem lhes explico: Pertencer é encontrar-se. É, diferente do que se pensa, estar em movimento. A autêntica pertença é aquela que está tão enraizada que, mesmo quando o velocímetro marca 67 quilômetros por hora, ela continua a existir. É uma pertença nomadista, formada por pequenos até logo, até amanhã. Mas é uma pertença sempre reencontrada. 
No céu, no som e no sul, pertencer é, enfim, - parafraseando novamente Bethânia - viver a vida só de amor.

17 julho 2013

A autossuficiência dos mais fracos

Noite passada a luz da geladeira queimou. Não que isso seja lá um grande acontecimento, mas a gente só percebe a importância das pequenas coisas (e isso inclui a bendita luz da geladeira) quando elas vão embora (ou, no caso, queimam). Em meio a escuridão que inundou meu ketchup e o resto de pizza, quase liguei para um técnico, e, depois, também pensei em um eletricista, pois eu não fazia ideia de quem deveria se responsabilizar em uma hora como aquela. Digo, não existe profissão para isso, ninguém se gradua para trocar a luz da geladeira. Na dúvida, acabei chamando o meu pai.
Hoje pela manhã acordei melhor: a luz da geladeira estava consertada. Mas pai! Não precisava ter pressa - até porque durante o dia aquela luzinha é tão inútil. Entretanto, agradeci o favor e me lembrei de que, enquanto ele realizava o conserto, eu estava assistindo o último episódio de Dexter. Lá longe, no quarto. Onde quero chegar: eu não acompanhei o processo todo para saber como se conserta uma luz de geladeira. E se ela queimar outra vez?!
Enquanto o personagem da série de tevê assassinava um par de sujeitos, virei o rosto para o outro lado da cama. Vazia. Maldita insuficiência que me faz pensar que cabe mais alguém - sempre cabe. Não, não, logo pensei. Chega disso! É hora de ser autossuficiente. Se o objetivo é morar sozinho, pelo menos uma luz de geladeira eu devo saber consertar. Se todos os dias não podem ser dia dos namorados, que ao menos nos outros dias eu saiba me portar bem comigo mesmo.
Comigo mesmo? Mas eu nunca fui muito com a minha cara!
Fui para o banheiro, dei uma rápida olhada no espelho. Oi, muito prazer. Blergh, tchau. A sua cara eu vejo todo dia e já enjoei. Sentei na frente do computador, então. Rolei os olhos pelos nomes e mais nomes de pessoas que poderiam me ajudar - dentre tantas, convenhamos, alguma haveria de me ensinar a ser autossuficiente. Mas, ei! Espera. Ser autossuficiente a partir de um conselho? Quer dizer, a partir da ajuda de um segundo sujeito? Isso não é autossuficiência coisa nenhuma, para começo de conversa!
Voltei para a cama e atraquei minhas tentativas. Tipo, deixa pra lá. Talvez isso nem mesmo seja um índice de auto-insuficiência (se essa palavra existir). Quem sabe isso tudo não passa de um desdobramento da minha carência. Ah, sim, porque ela existe pra valer. Sabe, talvez fosse só vontade de ver o meu pai e talvez fosse só saudade de me sentir completo com o meu amor de uma vida toda na mesma cama que eu. Até porque eu já sei fazer a minha própria comida, pago as minhas próprias contas e também lido com as minhas próprias consequências. Qual é, eu sou um "autorazoável" de primeira!
Então, da próxima vez que a luz da geladeira queimar, eu já sei quem chamar.
- Alô, pai?

Calma!
É só saudade.

27 junho 2013

Sobre reflexos e atropelamentos

Quis não acreditar no reflexo que o espelho me mostrava, mas, escondido em algum quarto desalugado de mim mesmo (o qual quase nunca ouso entrar), havia a certeza de que um espelho nunca mente. Então lá  estava o meu reflexo banhado de verdades absolutas – e elas eram resumidas em um par de olhos pesados, olheiras significativas e lábios rachados. Deus!, quando foi que eu envelheci tanto e tão rápido? Quantos anos eu tenho mesmo? Ah, 21. Só 21. Vinte-e-um (bem assim, por extenso, para enfatizar e dramatizar o processo todo, caso contrário não seria eu).
Quando penso nesse carma que é envelhecer, logo lembro do “Discurso para Aniversariantes” que o meu pai me ensinou cedo e quase que diariamente coloco em prática. Sabe, aquela chatice toda de chegar o aniversário da sua tia, por exemplo, e, depois de desejar parabéns, você soltar um “tá fazendo 50 mas com corpinho de 22, hein!”. Isso sempre funciona. Acontece que, no meu caso, a situação é outra: estou fazendo 22 e o corpinho é de 50.
Não que esse seja o caso, problema, causa mortis da coisa toda. Mesmo. A droga real é viver atropelando tudo – e olha que o meu pai (de novo ele) ainda nem me libera o carro. Eu ando atropelando algumas amizades por pura falta de tempo, uma vez que estou alimentando aquela ânsia de terminar a faculdade amanhã mesmo. Atropelo o convívio familiar essencialmente necessário por culpa da rotina e encontro a senhora minha mãe no café da manhã e na hora de dormir. Bom dia, mãe. Boa noite, mãe. Fim de semana já é quase regalia, luxo, recompensa, ostentação. Mas, nisso tudo, eu ando atropelando a mim.
Eis que o espelho me pergunta quando foi a última vez que eu tomei uma xícara grande de chá e li um livro sem me preocupar com mais nada. Ele quer saber qual foi o domingo que eu dormi sem hora para acordar, em quantas folhas secas eu pisei no último mês (como ele sabe desse meu vício?), e quando eu andei de bicicleta pela última vez – nessa hora eu dou risada; não sei nem andar de bicicleta. Vai ver eu não tive tempo para aprender também.
Estou deslizando, escorrendo, escapando de mim mesmo. Eu estou perdendo em mim muito o que há – ou deveria haver – em mim.  Eu não estou me aproveitando - e, se há alguém que possa se aproveitar de mim, esse alguém sou eu mesmo. A solução talvez até seja deixar pra lá - enfiar a mão no saco e separar o que precisa ou não receber uma preocupação maior. E a questão final é exatamente esta: preocupação. É a preocupação que envelhece, é ela quem toma meu tempo.  Então, a partir de agora, decidi que eu vou é Narcisar. No sentido puro, é claro.
Eu vou olhar muito mais para o espelho. Mais do que isso, eu vou olhar mais para mim.

19 junho 2013

Bom dia, Geração Z

Quando jurei à bandeira, no apogeu dos meus 18 anos, prometi servir ao meu País em quaisquer que fossem as ocasiões. Seguindo o Artigo 217, jurei “estar sempre pronto a cumprir com as minhas obrigações militares, inclusive a de atender a convocações de emergência”. Naqueles dias, não imaginei que viria a colocar em prática os meus votos. Pensei, meio desnorteado devido à idade: “no Brasil não tem guerra, não vamos entrar em conflito com ninguém”. Recordando agora (já se passaram três anos), acho engraçado. Falo isso porque eu não cheguei a pensar que o Brasil pudesse entrar em conflito consigo mesmo.
De fato, eu estava errado: no Brasil tem guerra sim. Lutas diárias que vão dos causos ao caos. Seja a violência doméstica, os inúmeros crimes hediondos, as ocorrências de estupro - são apenas exemplos de situações recorrentes ao redor do mundo. Não são problemas exclusivos deste País, são problemas que envolvem a psicopatologia de qualquer indivíduo. Mas, então, qual é o problema do Brasil? O que pode haver de errado em uma terra tropical, onde tsunami não marca presença e o povo é feliz com sua caipirinha na mão e um sambinha - ou funk, caso preferir - no pé?
Cresci imerso em uma sociedade que só estende a bandeira verde e amarela quando chega a Copa, e na verdade não se pode culpar o povo por isso. Há um certo orgulho massificado quanto ao futebol porque, infelizmente, trata-se de um dos únicos expoentes positivos por aqui. Mas não existe Nação se existir apenas um motivo para orgulho. A Copa não é o problema, até porque, o problema são os outros problemas - que são maiores. A Copa é uma realidade inventada. Existe um déficit na balança comercial do País quanto à educação e saúde, porém existe um superávit quanto à construção destes estádios de outro mundo. Difícil entender. Brasil, Brasil. Quem tu estás querendo impressionar?
Creio que podemos resumir a Pátria amada em uma palavra: delay. O problema do nosso País é, sim, o delay. E, para aqueles que desconhecem o termo, já explico: delay é retardo, delay é atraso. É deixar para amanhã. Aposto neste ponto de vista porque nós, Brasileiros, fomos acostumados a aceitar a máxima dos "cinco minutinhos". Nós aceitamos uma procrastinação e nós procrastinamos. No Brasil tudo vai - vai ser melhor, vai ir pra frente, vai mudar. No Brasil nada vem. E aí aceitamos a desculpa de que o nosso único orgulho poderia gerar transporte melhor, integração sócio-cultural e desenvolvimento sócio-econômico a partir do turismo. Acontece que o turista ficará por aqui no máximo 15 dias, e eu pretendo ficar nesse chão por um bom tempo. Depois das praias e da visita ao Cristo Redentor, eu ainda estarei aqui. Eu sei o que precisa ser mudado.
Quero convergir na ideia de que a política do pão e circo ainda é aceita por pura necessidade - e irá continuar existindo enquanto trabalharmos para consumir. Sem críticas e aprofundamentos ao consumismo propriamente dito, a ideia é que, enquanto eu trabalho e faço bico para vencer as contas do mês (das quais grande parte se traduzem em impostos), eu não enxergo quem comanda o meu País. Eu vivo para esperar o fim de semana, eu vivo para esperar as férias do final do ano (quando, muitas vezes, eu vou preferir ir para fora do País - por que será?). Quase não tendo tempo para cuidar de mim, não sobra tempo para olhar quem está cuidando de nós. Tem, aliás, alguém cuidando de nós?
Existem causas, existem porquês. Mas existem muitos de nós. A sociedade vestida de exército é o maior reflexo de que, por mais variadas que sejam as indignações, cada uma delas pode (e tem de) ser revista. O meu protesto é pela cegueira generalizada provocada por um evento "cultural" que atropela o bem estar humano - as necessidades básicas de saúde, educação, transporte, moradia e alimentação não estão sendo cumpridas. A minha revolta é pelas 13 milhões de pessoas que passam fome diariamente e que certamente sabem que, não muitos quilômetros em frente, muito foi gasto para se impressionar o mundo. Mas o que se faz para impressionar o próprio povo? Falta lembrar que, se este gringo que vier assistir ao "maior espetáculo do mundo" passar mal (excesso de churrasquinho-de-gato ou cerveja podem ocasionar o mal estar), o mesmo gringo será levado diretamente de um estádio colossal para um hospital que não recebe investimento adequado.
Mas, bem, está só é a minha causa. Qual é a sua? Não é desculpa alegar que se reclama por muito, o que faz com que tudo transforme-se em nada. O foco destes manifestos está claro: mudança. Seja em qual for o setor escolhido por cada um dos manifestantes. O despertador tocou (enfim) e é hora de acordar. Bom dia, Geração Z. Chegou a nossa hora. Vamos desafogar os dedos destas teclas e afogá-los nos potes de tinta. Pinta a cara dele, pinta a cara dela. Pinta o Brasil que tu quer ver e espera ser escutado. Assim como no pífio transporte público do qual reivindicamos, sabe-se que o ônibus demora, mas ele chega. A mudança também. De antemão fica o aviso: quando chegar o 7 de setembro, as ruas também têm de estar lotadas com essa juventude esperançosa que se cria agora. Talvez (ainda) não saiamos para demonstrar um orgulho absoluto perante a uma Pátria que, lamentavelmente, ainda se encontra defasada, porém deve-se estar presente para mostrar que, nessa luta, quem vencerá será a insistência.

17 junho 2013

Carta à Porto Alegre


Estou tentando acreditar que foi o clima. Às vezes procuro culpar a minha visitação extremamente esporádica dos últimos tempos. Acontece que havia uma neblina baixa, o céu estava cinza e o vento era tímido. Os carros que passavam eu podia contar com um palmo aberto, e as pessoas, então, eu nem mesmo via. Nas tuas ruas eu me senti triste. Logo eu, menino do interior que, por puro clichê, deveria achar tudo isso "coisa de outro mundo". Mas não. Em um domingo naufragado, amiga Porto Alegre, quis eu saber quem tinha te abandonado.
Da janela do ônibus, vi prédios de fachada tingida pelos marginais e ruas esquecidas - um lúgubre sinônimo para sujas. Não havia nenhum vestígio do sol que pousara por ali no dia anterior, e as esquinas contavam as horas para se esconderem dentro da noite. Lembrei das pretensões e dos sonhos, das vontades de arquitetar uma vidinha que seria muito melhor dentro de ti, Porto Alegre. Eis que lembro de quantas pessoas já tirastes de mim e aí passei a te odiar.
Como ousas, querida Capital? Não volte a me tratar assim! Este coração de guri serrano se comprimiu ao te ver em monocromia, desolada, aborrecida como adolescente que não pôde sair de casa. Esse coração aqui sentiu pena por não encontrar-te boa demais como sempre, por ver as nuvens carregadas tampando o teu sol no gaúcho céu anil, todas elas doidas para limparem esse teu dia triste. Então, seja complacente: pare de raptar quem eu amo.
Tem dó de mim, Porto Alegre! Assim como tive dó de você ao encontrar a Protásio Alves chorando óleo de motor. Peço, por favor, para que devolvas quem tu me tirastes, e não te atrevas a me assaltar assim outra vez. Não ofereça tantas possibilidades, não seja grande demais, não pareça tentadora. Mas, também, não exijas muito de si mesma - gostar de ti já é natural.
Por fim, deixarei esta carta em um banco qualquer da Redenção, ou famoso Parque Farroupilha. Debaixo de uma copa de árvores, ao lado do gaiteiro que canta para todos o que para todos não passa de uma obviedade avassaladora: "Porto Alegre é longe".  




04 junho 2013

Meia luz

Rendo-me aos grandes poetas neste pequeno palavrear.
Eis que escrevo sem muito pensar, sem saber exatamente o que irei dizer na linha seguinte. Perdoem-me então pela desconstrução destes parágrafos, pela falta de conectivos.
É que hoje eu queria falar da meia luz.
Hoje não!
Desde muito.
Acontece que venho colecionando instantes de minha amada que preciso urgentemente exponenciar. Então queria dizer eu, antes de dormir, quão penetrável fica a pele dela quando posta à meia luz. 
Seja naquele teatro de muitos atores, quando seu perfil emergiu da escuridão, banhado pelos pontos obtusos de uma luz que, mesmo não devendo, a atingia. Senti ciúme da luz.
Que dizer então dos ombros dela, ah, que ombros! Inundados de luz amarelada, mas sempre meia. Meia luz. Ela na ponta da cabeceira, eu tentando domar a ânsia de domá-la para comunicar: meu bem, estou te amando feito louco.
Resguardei o óbvio.
Por fim, o vértice de meu desespero: minha amada refletiu a tela do cinema. Pele sulfite que abrigou uma hora e meia de convergência sentimental. 
Não vi o filme, mas vi seus traços. Vi vestígios de linhas sombreadas que desciam de sua testa, resvalavam pelo nariz e mergulhavam na boca. Vi legendas naqueles lábios meus, vi um bando de atores nos olhos que riam - veja só, olhos que riam! (Espero que compreendam quando enfatizo).
Na incerteza da escuridão, era ela quem me separava de uma cegueira completa. Quando me capturou, que dó!, a sua boca abriu passagem, curvou-se para cima e surgiu na meia luz o diagnóstico para meu coração festeiro. Acreditem-me os sábios, os cultos, os doutrinados, eruditos e instruídos, ou apenas os loucos de amor: é dela o sorriso mais lindo dos mundos.

Agora, exatamente agora, como que por catástrofe do destino que me põe a recordar, alguém toca piano no andar de cima. Não sei o nome da canção, não sei se foi Chopin ou Mozart quem a tornou famosa. Mas é lenta. É um som doce, escorregadio para as mãos do pianista. Parece flutuar. Assim como o fronte dela à meia luz - a única imagem que consigo visualizar sentado aqui, de olhos fechados, trilhado pelo pianista oculto.
Já no fim, perdoem-me os leitores por respingar amor em demasia nestas palavras. É que, antes de dormir, eu precisava falar de minha amada. 
De minha amada na meia luz.

30 maio 2013

Eu ainda


Depois de 30/60/90, apesar de não sermos cheque pré-datado de mercado, eu tenho bem marcado desde o dia em que passei a enlouquecer. Meu bem, lá vai! Tá aqui embaixo o relato, o pífio desabafo que eu acho que nada tem a ver. Porque, meu bem (repetindo), eu tô mesmo é louco. Louco de pedra. Louco de Pedro. De quebra, tá certo, confesso: tô louco por você.

Eu ainda penso algumas vezes antes de falar, e eu bem que tento disfarçar essa minha vontade de querer saber se você não me acha meio fora do comum. Eu admito que ainda pesquiso as músicas que você gosta e eu até anoto todas as notas só pra aprender e poder depois cantar pra você, como se fosse sem querer. Eu me questiono quase sempre se eu sempre devo te dar bom dia, se fazendo isso eu não vou criar uma rotina e você vai cansar de me ver. Eu ainda tenho medo de ser sempre igual e me tornar decoração no seu balcão, num porta-retrato tão cafona que ninguém vai perceber. Nem você.
Eu sei que eu sou meio chiclete, mas, se der, me promete e não esquece que não há eu sem você. Mesmo isso sendo clichê. Assim como não há segunda sem feira, domingo sem dormindo e sábado sem sabadar. Assim como não há Urano sem Netuno, professor sem aluno, uma garoa sem se molhar e uma música cujo refrão não seja só 'lá lá lá'.
Eu ainda passo muitos minutos, chega até a ser um insulto, decidindo que roupa eu vou vestir. Eu ainda receio e rezo: 'por favor, não me ache patético por qualquer frase que eu, por erro, deixar sair'. Eu ainda decoro de cor e salteado o cheiro que teu cheiro tem só pra lembrar e chorar e chorar e chorar cada vez que você não vem. E tristeza é o que mais tem quando eu estou sem. Você.
Eu ainda espero você depois do trabalho, e, ai, que trabalho! Te procurar na saída e não te achar. Acho que todo e qualquer funcionário me acha um otário por esperar sabe-se-o-que-lá.
Eu ainda almoço onde a gente almoçava na esperança vaga de a gente voltar a almoçar. Lá. A atendente já até tá descrente e sabe que na mesa não cabe o pedido que eu pedi e que ela não vai poder preparar. No menu teu nome ainda não consta, então eu saio e pago a conta, mesmo sem almoçar.
Eu ainda sou como aquelas garotas de 12 anos. Traçando e rabiscando o teu nome no canto direito da minha agenda. Tentando, tentando e tentando te alcançar. Te ligando antes, durante e depois do jantar. Como você está? Tá tudo bem? Me diz o que aconteceu. Ei, por que você não responde se aqui aparece que a minha mensagem você leu?
Para, tá tudo bem. Não aconteceu nada. Ontem a noite eu só quase pulei da sacada. Mas isso eu não vou te contar. Imagina só que sorte se você descobre que tá amando um louco que te ama feito louco, louco feito aqueles que se deve internar? Eu ainda acho que se você achar que eu devo me tratar por te amar, tudo bem, não faz mal. Amar tanto alguém assim nunca foi considerado normal.
Meus amigos ainda vomitam álcool enquanto eu vomito palavras que até ontem desconhecia. Esse bocado de pecados de um garoto apaixonado, relatados num pedaço de papel amassado enquanto você dormia. Preenchi lacunas com loucuras concretas na esperança incerta de, antes de surgir o dia, encontrar uma resposta a uma questão incompreendida: ei, meu bem, prosa rimada é poesia estendida?

30 abril 2013

Obrigado por não entender

Julieta estava em prantos. Aprisionava dentro de si uma tristeza que ninguém poderia imaginar que carregava consigo. Nos olhos, lágrimas de sal que pouco representavam a tristeza propriamente dita. O gosto das pequenas gotas era uma miscelânea de raiva e desespero sufocado.
Presa no quarto, Julieta não ousou abrir a porta. Quis correr para longe, mas o máximo que alcançou foi a lua. A lua que aguardava na beirada da sacada. De mãos atadas, bradou: 'Romeu, Romeu, onde estás, Romeu? Quisera que soubesse o vazio que preenche meu peito sofrido. Eles não entendem, Romeu!'.
Ali perto, salpicando pelas ruas tão rápido quanto brasa que foge do incêndio, estava o jovem Romeu. Este que, ao parar para escutar o despejo soturno de sua amada, não tardou em agir: escalou a parede de tijolos descascados e fez dos seus braços uma nova fortaleza para a moça. 'Julieta, minha amada, o meu desejo era dar-te toda a minha alegria, transpor meu sorriso para teus lábios, mas isto nem em beijo consigo. Então vou levar-te daqui.'
Fugiram num velho cavalo e chegaram ao meio do nada. Beijaram as estrelas, trocaram olhares apaixonados que deveriam ser o suficiente. 'Eles não entendem, Romeu', voltou ela a falar. 'Eles não entendem que lhe amo'.
Eis que Romeu sorriu.
Abriu os braços, gargalhou, deu voltas ao redor de si. E, vestido de noite, gritou para o enfim infinito daquele precipício: 'Obrigado! Obrigado por não entender!'
Ajoelhou-se e pegou na mão da amada. Cravou-lhe os lábios com vontade, mirou seus olhos e disparou: 'Casa-te comigo, Julieta. Mas casemo-nos na lua!'
Julieta soube. Julieta apenas soube. 
E Romeu voltou a gritar: 'Que o amor seja para sempre isto: um punhado sem sentido que até o maior dos filósofos duvide. Que nenhum poeta saiba discorrer, que físico algum saiba exemplificar em números. Que sempre haja alguém contra, que nem todos sejam a favor. Assim, saberemos o seu valor. E, principalmente, o quanto vale a pena lutar por ele! Obrigado! Obrigado por não entender!'
A moça só conseguia rir.

Desde então, dizem que Romeu e Julieta se mataram. Mais: mataram-se por não haver espaço para tamanho amor aqui na Terra. Que mataram-se porque ninguém entendia e os aceitava.
Já eu, lhes digo: Romeu e Julieta foram para a lua se casar.

22 abril 2013

Todos passam bem

Liguei a televisão. Lá estava ele. Repórter sério, microfone em punho e uma gravata que sufocava as palavras decoradas que fugiam de sua boca. Formal demais para uma cena tão trágica: estava em frente a um prédio de poucos andares que havia pegado fogo. No fundo, bombeiros se agitavam no mesmo ritmo que as sirenes. Um verdadeiro circo que eu assistia com um sorriso atilado no rosto e que não pretendia tirar. Mas tirei. Tirei quando o repórter, ao fim do seu discurso, largou aquelas três palavras: 'todos passam bem'.
Como assim?! Então quer dizer que todos, absolutamente todos, passam bem?!
Quanta mentira. De onde foi que você tirou essa informação, senhor repórter? Qual foi a estulta fonte que lhe repassou esse final feliz não planejado? Pois isso não é verdade. Saiba que nem todos passam bem! E se você quiser um exemplo, uma vítima a quem entrevistar, então tome a mim. Ande, anote aí no seu bloquinho que a vítima real deste incêndio fui eu!
Não, não. Eu não estava no apartamento que pegou fogo.
Mas eu também fui incendiado. Ofereceram-me uma faísca, e aí eu entrei em combustão. Ka-boom, explodi pelos ares. Isso tudo metaforicamente, é claro. Mas peguei fogo. No meio da crise, atirei frases de ciúme, tentei engolir o fato de que queriam tirar o que sempre foi meu - mas só queriam. Vasculhei fatos do passado e tentei aplicá-los no presente, e fiz isto sem saber que, enquanto a minha loucura crescia, menos ela fazia sentido.
Não, não. Eu não estava no apartamento que pegou fogo.
Eu sou só a vítima inicial disso tudo. Eu sou vítima do dono do apartamento, do terceiro elemento que quis estragar um romance a dois. Você não vê essas lágrimas? Eu de fato não estou passando bem! Espera, senhor repórter. Mas que história é essa? Como assim você não pode entrevistar alguém que não participou do incêndio? Mas eu participei, e participei muito!
Não, não. Eu não estava no apartamento que pegou fogo.
Na verdade eu espalhei o álcool e risquei o fósforo. Ateei fogo em tudo. Acabei com o que estava nos acabando. Pode anotar no seu bloquinho, senhor repórter. A informação é confiável.
O incendiário sou eu.
E é uma pena que todos estejam passando bem.

14 abril 2013

Casa Vazia

Todos saíram. Foram viajar. Fiquei sozinho em casa, assim como o garotinho do Esqueceram de Mim - a nossa única diferença é que por aqui não vaga nenhuma comédia. De uma hora pra outra, o apartamento esvaziou. Pelas frestas esquecidas abertas, o que entra é um vento frio que nem mesmo foi convidado. Ainda posso escutar o som das rodinhas das malas deslizando pelo corredor. Não vão, não vão! Eu não quero ficar sozinho.
Sobrevivi alguns dias. No começo até que gostei - pus a música alta que quase nunca me permitem e chamei uma pizza toda só pra mim. Tudo do meu jeito. Esqueci o mundo lá fora, pensei só em mim. Parei pra me questionar se aquilo tudo era o meu futuro - alguns metros quadrados só meus. Gostei da ideia no primeiro dia, acho que um pouco menos no segundo. No terceiro, comecei a esperar por pessoas que nunca chegavam. 
Hoje eu pensei em sair. Que tal um cinema?, propôs o meu subconsciente. Dei risada. Que sentido faz sair de casa pra ver um bocado de gente rindo reunida? Eu não quero ser o único reunido comigo mesmo. Eis que decidi aprofundar a minha ideia de solidão forçada: vesti o meu pior abrigo de moletom. Passei pelo espelho e, Deus me livre!, ali vi um mendigo. Bigode por fazer e cabelo raspado que nunca cresce (minha tia até me confundiu com marginal, que tal?). 
A explicação que dei a mim mesmo foi a de que o domingo não merecia a minha preocupação. Quanta desculpa. Então eu deitei na cama, me escondi debaixo dos cobertores e esperei que me encontrassem. Alguém me chama pra sair, alguém liga pra perguntar como eu tô me virando. Mas não. Ninguém procura debaixo de um bocado de cobertas. Ninguém tem como adivinhar que eu tô querendo sair dessa casa vazia, ou que eu agora mesmo eu tô abrindo as janelas na esperança de que, de algum jeito, ela fique cheia.
Pensei em ligar. Eu precisava de ajuda. Quis gritar pro mundo: me tirem daqui!, mas depois lembrei que ninguém tem nada a ver com a minha solidão. Nem com o meu medo. Medo de ficar sozinho, de ser realmente esquecido, de não fazer diferença ou de não ser importante. Então, no meio disso tudo, abri a porta para os pensamentos depressivos, me auto coloquei no limbo depois de não ter com quem conversar. No fim, tentei acreditar que a solidão é a minha melhor companhia.

Agora já é noite. Escuto o estômago roncar, mas não vou deixar essa cama. Escuto o silêncio, mas quero baixar o seu volume. Eu sou o cara triste que amanhã já vai estar bem de novo. Tudo passa, até a solidão. Porém, no momento, a minha tristeza nem o melhor dos poetas conseguiria definir.

11 abril 2013

Eu sou Feliz(e)Ciano

Parem de xingar o tal do Marco Feliciano. É perda de tempo. Creio que, em uma comparação tão satírica quanto este causo, seria o mesmo que exigir uma boa redação de vestibular de um analfabeto. Logo, não culpem um Deputado que aparentemente não soube ler. Até porque, a Bíblia é clara: 'Tratem a todos com o devido respeito: amem os irmãos'. Então me diz, Pastor Feliciano: o que foi que a sua religião te ensinou?
Pois a minha foi muito clara. Aprendi em primeiro lugar a conviver em sociedade. Uma vez que ninguém vive sozinho, devo tratar com respeito ao próximo - sabe-se lá quando vou precisar dele para que me empreste uma xícara de açúcar ou até um pouco de seu sangue raro? Também aprendi na minha religião que ninguém é maior do que ninguém e, principalmente, que a vida dos outros não é a minha.  Então, se para fulano aquilo o faz se sentir bem, que mal tem? Isso é tão fácil. Não precisei de igreja nenhuma para me ensinar. Eu te digo, Feliciano: A minha religião sempre foi a do amor.
Nascemos livres e iguais em dignidades e direitos - já diz o Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Todos somos célula, somos massa corpórea que só deixa de ser ínfima e insignificante porque um coração nos foi dado de presente. E, nele, o sentimento. Este que se contrai por um, se expande por outro. Sentimentos são incoercíveis, cegos, blindados a ponto de não pedir nem o nome na porta de entrada. Que dizer de uma mãe que ama um filho logo quando ele é apenas uma pequena bolinha dentro de seu ventre? Inexplicável. Agora vem cá e me diz, inFeliciano: por que a felicidade alheia é um incômodo para você?
Ninguém entende o sentimento, ninguém sabe explicar, ninguém o escolhe e ninguém o controla. Acontece. Ou você acha que um homossexual escolheria continuar sofrendo o preconceito que frequentemente sofre, caso orientação fosse opção sexual? Abra os olhos, Feliciano. Ninguém escolhe ser infeliz como você está escolhendo ser.

Caríssimos, sugiro que parem com as suas revoltas direcionadas a um Deputado que está no lugar errado. Mudem o foco, mirem naqueles que o mantém ali - ou, se não, mirem em algo maior (convenhamos, não é difícil). Mantenham a classe, o bom senso (aliás, coloquem-nos em jogo). Ensinem o que é respeito a quem ainda não sabe. Se a questão aqui é o amor entre duas pessoas do mesmo sexo, favor utilizar-se desta arma propriamente dita. O amor resolve tudo.
Por fim, que todos nós sejamos como o céu. Feliz e ciano. Este que, sendo o único a estar de fato acima de nós, provavelmente dá risada perante a uma discussão tão inútil quanto a felicidade e o bem estar alheio. Afinal, só não entende o amor quem nunca amou - do peixinho de aquário durante a infância, até a paixão da vida inteira.
Então vem aqui e me responde, Feliciano: o que é que você ama?



30 março 2013

Você não sabia

Procurei entre rostos algum que se parecesse com você. Já havia lhe visto antes, de longe, então não teria dado tempo para que você fugisse. Olhei para cá, olhei para lá. Um bando de gente aglomerada, temperatura expressiva de um verão tão absurdo quanto os pensamentos em minha mente. E aí detrás de uma coluna você apareceu com aquele sorriso. Maldição, por que você trouxe ele consigo? Sempre soubemos que foi isso o que dificultou tudo na maioria das vezes. E, para completar, você riu. Fotografou mentalmente a minha cara de idiota por estar te procurando, sendo que você estava se escondendo de mim apenas para fazer graça. Aleguei ter te visto desde o princípio, mas quanto a isso era pura mentira.
Mentira... Assim como as vezes em que você esteve ao meu lado. Um belo e novo par para que os outros pudessem admirar. Eles acreditaram que eu havia ganho você para mim, pois isso até eu mesmo acreditei. Mas eles não sabiam, eu não sabia. Tudo era uma farsa. Naquele momento, antes mesmo de capturar o fragmento de ódio que escapou de meu interior, você utilizou esses braços antes tão bem-vindos para me abraçar. Cinco abraços seguidos que me fizeram girar em meio a tanta gente. Apertou-me com força, rindo da vida porque você tinha o total direito, afinal você não sabia o que eu havia descoberto. Então tudo aparentemente estava bem. Um encontro, cinco giros, um cumprimento depois de duas semanas sem se ver. E eu ali, querendo creer na veracidade daquele carinho, pretendendo acreditar que na verdade o errado era eu e a inocência era o seu nome do meio. Girei contigo, cambaleei entre nossas pernas, rodei no mesmo lugar como carrossel de criança. Tudo lindo, tudo nosso, tudo tão de faz-de-conta.
Aproveitando a minha ignorância, eu lhe paguei um refrigerante. Laranja, o meu preferido. Brinquei com palavras porque essa é a minha melhor qualidade, e enquanto isso você brincava com a minha estupidez, testando-a para ver até onde chegava. Houve um tempo antes disso em que eu corria atrás do amor, mesmo sabendo que essa é a maior das ignorâncias. Meu bem, eu corria atrás de você. Mas naquela hora era diferente. Eu passei a tentar correr de você. Sabia que isso não aconteceria, pois mesmo depois de tamanha decepção eu ainda continuaria ali. Olhando teu sorriso, guardando o teu perfume para os dias de ausência. Nunca foi fácil esquecer quem te ensinou a amar - mesmo que você não fizesse ideia de como fazê-lo. Então aproveitei o momento, pois era a primeira vez em que eu lhe conhecia de verdade. Muito prazer, quem é você?
Foi bom, ex amor. Gostei de lhe ter ao lado. Desta vez em um ineditismo estranho por não saber o que sentir. Amor ou ódio. Tudo ou nada. Optei, então, por um meio termo, onde o 'vou deixar isso para depois' me pareceu soar melhor. Você me enganou, mas por mim tudo bem. Crescer desse jeito sempre me tornou mais forte. E agora eu comando o jogo que você nunca terminou. Dito as regras, sou o dono disso aqui. Ganhei a autoridade porque você não sabia que eu sabia de tudo. Naquele fim de tarde, já haviam colocado um ponto final em nossas esperanças. O nosso amor já era história finalizada, coisa do dia anterior. E só você não sabia.

27 março 2013

Quero ser cremado

Quando eu morrer, ao meu corpo por favor ateiem fogo. Já que vou estar sem sangue nas veias, sem cor e gelado, em piedade eu peço para que, como um filhote abandonado que treme de frio, esquentem-me. Joguem fogo no meu cadáver, vamos lá! O mundo precisa de mais e mais praticidade. Acabem com todos os cuidados inúteis de beleza que cultivei durante anos, não entreguem nenhuma festa de bandeja para os vermes de um túmulo. Eu quero ser cremado.
Então nem inventem de me enfiar em um amadeirado luxuoso de 2 metros por 90! De jeito nenhum gastem com a minha exiguidade. Gastos com ausência só se for pra viajar - e desta vez a viagem é só de ida e sem escalas. Pensa só que terror ter que ficar deitado no mesmo lugar, imóvel, durante toda a morte. Que saco. Preciso andar por aí, não quero parar o meu descobrir nem mesmo no post mortem - até porque é na morte que se escondem as melhores descobertas. E Deus me livre ter que andar pelas esquinas de um cemitério toda noite! Maldita limitação!
Vejam bem: tem tanta gente morrendo que falta até espaço. Já não existe antro de sem-vidas que aloje um cadáver debaixo da terra. Nos empilharam, gaveta sobre gaveta. Arquivo literalmente morto. E, por isso, se não atenderem este meu apelo crítico-argumentativo, meu corpo então ficará lá, em um repouso tão inútil quanto o período entre a morte e a nova vida. Insisto: favor me incinerar. Afinal, quando morrer eu vou virar número mesmo. Vai estar no papel. Vou passar de vivo para morto - muda só uma palavra, muda só a situação, é só um carimbo. Favor então só providenciar o atestado de óbito. De resto, mais nada. Simples assim: me deixem no papel. Unicamente. Eu quero ficar no papel! Me deixem em forma de palavra. 'Morto'. Quero morrer e virar palavra, prosa e poesia. E não decomposição. A poesia em si nunca se decompõe.
Resumindo e sumindo, não quero lugar para visitas. Não um lugar fixo. Nem pensar! Visitem-me sempre, visitem-me em pensamento. Assim como uma nova organização religiosa sem recursos financeiros para edificar um templo que então resolve pregar a sentença de que Deus está em todo lugar. Todos os mortos estão. Pra que igreja? Pra que caixão? Não me deixem apodrecer! Cruz credo, me exterminem de uma vez!  Deixem o fogo consumir qualquer resquício de vida que tenha se aglomerado em algum canto do meu corpo distraído. Au revoir pra todos então. Pá! Virei pó.
Por fim, peço para que não pensem que estas palavras são bruscas. Brusca é a vida, não eu. Porém, quando eu morrer, ao meu corpo por favor ateiem fogo.

19 março 2013

Elevador


Desço pelos teus braços e recepcionas meu vazio nas costas de tuas mãos. Sorrio e suspiro. Faço fuzarca logo na porta de entrada. Subo um andar e tão pronto estou farejando teus ombros que, despidos como a carência em meu olhar, acomodam meu ser para uma reunião casual. Coisa rápida, mal discutimos as ações que caíram ou cairão. 
Eis que cai uma alça, desliza o vestido no corpo esguio e frio. Quem viu? Blecaute total na sala de jogos que rodeia teu umbigo. Assim nocauteio teu íntimo, e fujo descendo sem nem saber em qual andar o inferno está instalado. Quente. Pegando fogo. Nada literal, graças a Deus. Falta-me o ar ao alcançar o subsolo do teu edifício de um metro e setenta, escorrego a língua pelo Calcanhar de Aquiles que te sustenta. Pensar em rima nessa hora? Nem tenta!
De imediato me elevas e em um segundo estou no teu terraço. Os vales entre meus dedos interpolam-se nos teus fios loiros aperfumados de lavanda. Puxo-os com força, sufoco um grito na tua boca, arranho o arranha-céu. Aproveito e entro na porta localizada bem ao centro, saída de emergência em lugar estratégico onde jamais ninguém entrou. Olá, amor. 
Inunda-se o prédio num banho de realização. Descansa em silêncio o empreendimento bem sucedido. Outra vez dispenso as escadas, tomo o elevador. Agora nem sei para onde me deslocar, que botão apertar. Eu só sei que o teu corpo me leva pra todo lugar.

Abecê

De que vale
A minha poesia
Se você não ler
Ou entender

Eu a descartaria
E você riria
Ia preferir ver
Um programa de tevê

E aos poucos
Nessa vazia rotina
A gente perderia
Meu amor codificado em ABC

Então de que vale
Essa minha poesia
Se você não ler
Ou entender

Que nela
Esse frustrado poeta
Escondeu você

10 março 2013

Saiam da livraria

Metade do sábado já havia ido embora e eu estava em uma livraria, não que isso fosse novidade. Garimpando Chandler nestes bem pensados formatos pocket, eu curtia o silêncio de uma solidão acompanhada (tantos autores a minha volta não podiam ser ignorados). Eis que, ao imaginar se a minha estante comportaria mais um livro, ouvi barulho. Gritos.
Mas o quê?!
Uma trupe de seis adolescentes entrara pela porta bradando mais alto que escola de samba ao pisar na avenida. Três guris, três gurias. Todos jovens demais para formarem casais. De imediato pulei das páginas para me espatifar na realidade outra vez. Observei os seus caminhares por entre as gôndolas de livros desejando que não derrubassem nada. Tentei entender porque falavam tão alto sem me dar conta de que eles provavelmente não sabiam que, para um leitor, uma livraria é como uma igreja para um fiel. Então silêncio, por favor. E, mais importante, me perguntei: o que vocês estão fazendo aqui?!
Egoísmo, eu sei.
Logo eu, que sempre dividi os brinquedos e nunca deixei de compartilhar os pacotes de bolacha (com uma tremenda dor no coração). Eu, leitor e escritor, sendo egoísta o suficiente para não dividir os livros - quando deveria ser o contrário. Caso voltasse à metáfora celestial, a minha atitude seria o mesmo que o padre não querer distribuir a hóstia. Mas que feio. No entanto, por mais que tentasse me focar nas minhas futuras aquisições, na minha mente a frase gritada sem poder ser ouvida era só uma:
Saiam da livraria, saiam da livraria!
Mamãe diria para eu não ser egoísta. Papai diria que eu não devo julgar as pessoas. Ha-ha. Como não? Naquele momento já era tarde, pois eu olhava para todos como se fossem personagens de minhas histórias. Personagens secundários, é claro, os quais eu provavelmente não teria orgulho em criar. Isto até poderia soar deveras rude, caso uma das gurias não tivesse finalizado aquela visita sem sentido à livraria com uma frase em tom desdenhoso:
- Me dá esse de presente? - Segurava um clássico nas mãos. - Brincadeira, eu nem gosto de ler.
Enquanto observava aquele futuro indeterminado, assustador e triste enfim deixar o local junto de toda trupe, pensei comigo mesmo, egoísta que sou:
Ainda bem.

08 março 2013

Mulherando

Dizem por aí que eu sou complicada e perfeitinha. Complicada eu até que concordo de segunda a sexta, mas perfeitinha não. Nunca, nunquinha. Jamais! Até porque, me sobram dois pneuzinhos em cada lateral do corpo, o jeans tamanho 38 tá guardado no armário pra lembrar o tempo das vacas magras - literalmente! - e acho que, se fosse analisar bem, precisaria de umas duas injeções de botox. No mínimo, é claro.
Além disso, perfeita eu seria se tivesse uns centímetros a mais de altura, ou até mesmo se conseguisse não ter que correr tanto todos os dias. Pego o caçula no inglês, busco o mais velho no colégio, largo a tropa em casa e corro pra academia. Volto depois de uma hora, como pão integral e saladinha. Mas depois me bate aquela vontade de chocolate e eu dou um pulinho na cozinha sem ninguém perceber (todo mundo deve pensar que eu fico lavando a louça). Escondida - de todos e de mim mesma - belisco um pedaço da barra de Diamante Negro, mas logo perco o controle. E aí o caçula me vê, sai pela casa gritando 'lá vem a menstruação, lá vem a menstruação!'. Sim, eu ainda tenho que lidar com isso. Que dizer então da menopausa?
No fato de ser complicada, passei muito tempo tentando discordar. Quem, eu? Complicada? Imagina, meu bem. Eu sou a pessoa mais fácil de se compreender no mundo! Eu só não gosto de ser contrariada. Eu uso sapato da marca tal só porque são mais confortáveis, as bolsas são daquelas do nome composto porque duram mais, isso é óbvio. E nem venha me falar que eu só vou no banheiro com uma amiga por perto, porque isso é coisa de mulher e você nem precisa entender. Mas hoje em dia, me achando meio figurante do Parque dos Dinossauros, eu até que concordo. Sou complicada, difícil de se compreender. Isso no bom sentido, é claro. Até porque, qualquer mulher que se preze é misteriosa.
Disseram por aí há alguns anos que eu não era mais menina, e que então eu era uma mulher. Achei tão legal, sabe, essa coisa de ser madura e não mais uma menininha. Eu sou adulta já, olha pra mim! Em compensação, agora, anos depois, dou um abraço bem apertado em qualquer um que venha me dizer: 'nossa, você tá tão jovem'. E aí, meu Deus?! Como faz pra ser menininha de novo? Que merda! Ai, eu disse palavrão. Merda. Merda! Mulher também diz merda. 
Esses dias meu marido até disse que eu estava mulherando demais. Mulherando?! Como assim? O que você quis dizer com mulherando? Não me chama de mulher não, porque sou eu quem coordena essa casa. Trabalho 40 horas por semana, ajudo o caçula a fazer tarefa, e ainda cuido das namoradas do mais velho - uma nora de boa família, por favor. Passo no supermercado no fim do dia e no horário do almoço faço pilates. Quanto ao fim de semana, bem... Eu ainda tenho que lavar roupa, passar e limpar a casa. Então não vem me dizer que eu estou mulherando porque isso eu não aceito. Afinal, eu não sou nenhuma mulherzinha.
Cá entre nós, eu sou um puta dum mulherão.

19 fevereiro 2013

A Maria

A Maria é aquele tipo de guria inteligente. Senta em qualquer canto da classe e mesmo assim tira dez em Física, que dirá então em Português. A Maria é bem reservada, está presente quando os pais precisam, vai ao teatro e sabe tocar banjo. Todos os caras da cidade babam por ela, e sempre que ela passa eles deixam cair o queixo. A Maria é bonita. A Maria é linda! Mas a Maria não ficaria com nenhum deles, são todos iguais. Eu bem que deveria me perguntar porque a Maria deu moral pra mim, mas vai ver é porque eu sou diferente.
E nem de longe eu poderia reclamar, hein?! Os caras vivem falando que a Maria é que nem o prêmio da Mega Sena, mas eu sou o único que não acha que ela é loteria. A Maria é, entretanto, um troféu: tem uma bunda gostosa, olhos meio perversos (mas inocentes), caminha meio rebolativa, e a boca... Porra, aquela boca! Boca que eu já provei, que investiguei, que gostei, fiquei, não troquei e ainda retornei. Então, novamente: que poderia reclamar eu?!
Acontece que a Maria só me encontra lá depois do riacho, lá onde ninguém pode nos ver. Ela ri um pouquinho, me prende no seu corpo, possui minha carência por um momento que logo em seguida já não existe mais. Ô Maria, vê bem o que tu faz! Me chama pro amor, roubo teu sabor, e depois deixa tudo pra trás. Vai me abandonando que nem passarinho, voando devagarinho, deixando incapaz esse tolo rapaz. E minha consciência vira turbulência, sinto querência na tua ausência, pra enterrar o amor eu preciso de pás. Paz! Paz que não tenho, quando não te tenho, e eu poderia deixar tudo assim, mas... Maria, Maria! Deixou minha prosa coagindo com a poesia, nem me venha com esse teu tanto faz. Maria, Maria! Ô Maria! Que bem tu faria. Se ficasse aqui eu até te a...Maria um pouquinho mais.

16 fevereiro 2013

Então é isso: acabou

Tu tá no teu melhor vestido e ele nem pra aparecer. Faz dois meses que tu passou a escolher muito bem cada roupa antes de sair de casa, resgatou aqueles LP's com as músicas que ele escuta e até leu grande parte dos clássicos só para ter o que conversar com o cara. O pessoal da biblioteca bem que estranhou você trocar a sessão de romances infanto juvenis pelos amontoados filosóficos recheados de palavras que tu tem de correr pro Google pra entender - nem mesmo o dicionário tu usa.
E aí tu espera um pouquinho como se já não tivesse esperado antes. Porque ele te deixou esperando na internet, deixou com que tu quase escancarasse o quanto queria beijar ele - porque ele nunca daria o braço a torcer. E tu esperou tanto que ele te beijasse, sendo que na maior parte das vezes isso não aconteceu. Ele nunca nem ligou pra dizer um boa noite, até amanhã guria; não reparou que tuas unhas tão pintadas de vermelho; ou que hoje, mas só hoje, tu prendeu a tua franja pra que ele possa analisar teu rosto por completo.
A droga do tempo passando te eleva para o próximo passo na noite naufragada: o conformismo. Tu se convence de que ele não vai aparecer, que se arrumou por nada, que ele é um merda que nunca te mereceu. Tu lembra de tudo que fez por ele - os mimos feitos a mão e as cartas de uma típica apaixonada da era Vitoriana. Mas deu, chega. Não precisa mais fingir gostar de Bossa Nova quando tu adora um pop batido pra se deixar levar na balada. Haha, balada. Tu ainda lembra o que é isso? Ei, olha aí, até mesmo essa xícara de chá que tá na tua frente é uma ilusão que acaba de cair por terra, porque na verdade tu gosta mesmo é de refrigerante! 
Então é isso: acabou. Ele não vai aparecer e tu vai é embora antes que qualquer conhecido te veja ali, sentada sozinha na mesa de uma cafeteria que tu nem sabia existir no centro da cidade. Tu vai embora se perguntando o quanto valeu a pena se entregar para acabar assim, sozinha. Mas aí tu te lembra que, ao lado dele, tu sempre esteve sozinha também. Porque, mesmo se esforçando para ser o que ele sempre quis (sua estúpida!), ele nunca te deu valor. Veja bem, tu tá no teu melhor vestido e ele nem pra aparecer.



13 fevereiro 2013

Em tanto lugar

Pensando bem, eu já estive em tanto lugar.
Já estive em uma cama que podia me oferecer todo o amor imaginado, mas quis estar naquela onde eu figuraria apenas como parque de diversões por uma noite. Já estive debaixo de um sol inspirador e quente quando na verdade quis estar debaixo de uma tempestade devastadora. Eu já estive em abraços nos quais mal sabia o nome de seus donos, e já estive em lugares que nem mesmo quis estar.
Eu já estive em lanchonete fast food querendo estar num jantar a luz de velas. Já estive na praia querendo estar na neve, e na neve querendo estar na praia. Eu já estive no trabalho e desejei estar em casa, eu já desejei ter um trabalho para pode sair um pouco de casa. Já estive no cinema com aquelas paixonites de adolescência e nós até hoje não sabemos dar a sinopse completa do filme que 'assistimos'. Eu já estive em várias segundas-feiras querendo estar logo nas sextas, já estive sufocado em um beijo que dias depois quis outra dose, já estive bebendo o que horas depois vomitei.
Eu já estive em outro país e constantemente quero voltar a estar. Eu já estive com Fulano pensando como estava Ciclano, e hoje nem sei por onde andam esses dois! Já estive na lua, já estive noutro planeta, e poucas vezes eu já estive aqui, na Terra mesmo. Eu já estive meio branco e preto, procurando incessantemente pelo colorido. Já estive em um relacionamento enrolado querendo torná-lo sério, mas em contrapartida já estive em um relacionamento sério querendo vê-lo chegar ao fim. Eu já estive meio drama, meio comédia, meio samba e meio tango. Eu já estive todos os ritmos musicais ao mesmo tempo!
Já estive meio lá, e hoje estou meio aqui. Quem sabe amanhã onde eu vou estar? Pensando bem, eu já estive em tanto lugar.

08 fevereiro 2013

Por quem você passa batom?

Saia curta e decote controlado. Quem tu tá querendo impressionar? Tuas amigas dizem que o cara d'outro lado do bar tá te dando moral, mas tu custa em acreditar. Eu tô bem assim, eu tô bem comigo mesma. Eu sou suficiente! Esse batom cor rubro me deixa madura, independente. Mas aí tu se permite uma dose de tequila e o garçom já oferece outra de graça. Tu logo já tá rindo, atropelando alguns assuntos, aceitando a ideia de que sozinha tu só sabe mesmo é passar batom, mas nem o teu sorriso e a marca dele nos copos conseguem tirar essa pintura dos teus lábios por completo do jeito que ele conseguiria.
Se liga, guria. Existe um ele na tua vida sim. Talvez tu nem saiba o nome, telefone, em que bar ele se esconde, ou em que supermercado ele faça as compras todo mês. Quem sabe demore um pouco, talvez seja um sufoco, mas, veja lá, quem sabe ele apareça quando você menos esperar. Pode ser no elevador, pode ser pra curar tua dor. Pode nem ser no teu andar! 
Se liga, guria. Esse batom é muito forte pra que qualquer um possa olhar. Esconde isso, deixa que alguém o sonegue, e por enquanto a minha dica é esta: apenas sugere. Usa o vermelho, sim, mas usa dia sim, dia não. Vê se não banaliza esse teu rosto tranquilo e não deixa qualquer um te passar a mão! Homem pra uma vida toda é aquele que venha a se apaixonar pela cor do teu batom. Sim, exatamente, porque é nele que se esconde o riso, é por ele que sai a conversa, é dele que nasce o beijo. Então vê se escolhe direito essa cor, e que ela seja a cor do amor!
Se liga, guria. Tu olha no espelho e tá sempre a imaginar. Será que é hoje?  Será que eu acertei? Será que ele vai me olhar? Nem vem querer tentar disfarçar, nem vem com essa história de que esses lábios só são marcados porque você quer ficar bonita pra si mesma. Tá, tu te gosta assim, e se sentir bem consigo é coisa de bom tom, mas confessa e diz pra mim: Por quem você passa batom?

01 fevereiro 2013

Apanha(n)do da saudade

E quem um dia chegou a duvidar da saudade?
Ela sempre existiu mesmo. Saudade tem sempre um nome, um cheiro, uma cor ou um lugar. A saudade mora em São Paulo, Austrália, Nova Iorque ou no Japão. Mora aqui, mora lá. Ela é aquele vermelho-cereja  da camiseta que ele usou na primeira noite em que vocês saíram, é marrom-chocolate como a cor daqueles olhos que te encontraram tantas vezes, é tão verde que quase se confunde com a esperança de que ele ou ela possa voltar. A saudade pode ser um nome, masculino ou feminino, por vezes composto ou com tanto sobrenome difícil que você nem sabe escrever direito. A saudade é aquele aroma adocicado ou aquela essência amadeirada que ficou tão presa num canto da memória que você jura senti-la quando passa na rua despreocupado. Seu trouxa!
A saudade também é aquela conversa desajeitada, algumas risadas e choros na madrugada, os filmes que vocês prometeram assistir até o fim mas que foram interrompidos porque passar o tempo beijando quem se ama é a melhor opção. Saudade é aquele sentimento que mistura vergonha, vontade e medo quando se está no primeiro encontro, mas que acaba se transformando em ausência, tristeza e dor quando tudo termina. Não quero arriscar e dizer que a saudade é aquilo que não se falou - ou aquilo que se falou demais! Não quero deixar claro que a saudade pode ser querer voltar no tempo, porque provavelmente as coisas sejam como realmente deveriam ser - e a gente só precisa aceitar. Mas o que eu sei é que a saudade é um tipo de dor, daquelas que não se encontra remédio preciso na farmácia e que só se cura com aquela fórmula do esquecimento chamada tempo. E quando cura!
Quando bate na porta e a gente atende, a saudade invade a nós como intrusa mal educada. Ela logo vai preenchendo cada espaço vazio e trazendo de volta à superfície aquilo que tanto lutamos para manter lá no fundo. A saudade grita, a saudade fala em voz alta. Mas saudade também pode ser silêncio. A saudade, na verdade, ao que se sabe, também é rima. É uma música - ou talvez duas, três, quatro, cinco, ou até um disco inteiro. Saudade é letra, palavra, poema, prosa, livro, novela. A saudade pode ser estática como uma fotografia ou fugaz como um vídeo. Pode ser uma segunda-feira de cinema, as quartas de pizza ou as sextas de sol. A saudade pode ser todos os dias da semana, todos os meses do ano. Aquele ano!
Saudade é um brinde que vem com a vida, todo mundo ganha. Todo mundo sente saudade. Seja do filho que foi fazer intercâmbio, da mãe que foi ver se o céu é um lugar melhor mesmo, ou do 'amor da minha vida' que resolveu que, exatamente agora, o problema é ele e não eu. A saudade quase sempre está ligada ao amor. Amor que sentimos pela infância, pelo cheiro de areia da praia, pela música do CD esquecido na estante, pelas cartas escritas que agora já não são motivo para resgatar um relacionamento, pelo chocolate que não é mais fabricado ou por qualquer outra coisa que nos faça pensar. Saudade é isso, é pensamento. É martelar o que já não mais está aqui. Insistência, insistência. Até que ponto é válido senti-la?
A saudade é mesmo traiçoeira. Acomete, se mete, e quase nunca se esquece. Do beijo, do abraço, do momento, do sentimento. O que resta é recordar essa falta que é tão necessária, e acreditar que, sim, nós todos precisamos até mesmo da saudade para que não esqueçamos o quanto algo - ou alguém - já nos fez feliz algum dia. Conclui-se então que a saudade é uma felicidade que foi dar uma volta. Mas será que volta? Bem, só nos resta esperar. 


30 janeiro 2013

Aquilo que você deixou

Lembraram que hoje é o dia da saudade, e então lá fui eu investigar a memória, sem nem mesmo ter pedido permissão para entrar. Percebi que seria meio patético insistir na ideia de que a saudade tem teu nome, até porque isso já foi encaixotado e atirado no corredor dos problemas-sem-causa. Decidi, então, que eu tenho saudades daquilo que você deixou.
Pensando bem, saudade tua é quase o mesmo que voltar de viagem: algumas coisas ficam esquecidas, enquanto outras passam a ganhar uma visão totalmente renovada. É como se você fosse Pittsburgh e eu Tuvalu - duas localizações tão opostas que são separadas por quilômetros e oceanos infindáveis. E, após eu ter-me aventurado em terras tão longínquas, ficaram esquecidos por aí alguns beijos e pedaços de mim. Eu estou na tua estante, sei disso, mas será que você chega a olhar para esses meus resquícios alguma vez durante o seu dia?
Passo a me questionar se você ainda abre aquele saquinho com meu cheiro, se o faz por curiosidade ou por saudade. Logo depois vem a vontade de saber se as minhas cartas são relidas e se, numa ínfima possibilidade que se acende, elas mexem com alguma parte de ti. Qual é, deve haver algum pedaço de mim que restou por aí capaz de te fazer relembrar todas aquelas sextas-feiras de sol.
- Oi.
- Oi.
E então a gente caminhava por aí como se o amor não estivesse nos consumindo.
Aquilo que você deixou foi um céu cinza quando eu nem mesmo tinha uma paleta de cores para dar um tom levianamente mais fausto. Tanta esperteza cabe em ti que, diferentemente de qualquer um, você não deixou o choro, a tristeza ou a certeza de um término. Aquilo que você deixou foi a vontade, a determinação e a incerteza dos dias seguintes. Porém, aquilo que de mais gritante você deixou foi a inspiração para estes textos tristes. Exatamente o que você mais quis ter deixado.
No fim das contas, eu tava com saudade era de ser poeta.

25 janeiro 2013

Veraneio

Era começo de novembro e o meu mar já estava calmo. Após trezentos e cinquenta e oito dias sem te ver, a minha praia estava liberada para banho e novas diversões. A bandeira verde que balançava era a confirmação de que, após um longo período de ressaca, eu havia baixado guarda. Estava pronto, enfim, para uma nova temporada.
Por vezes pensei que tinha sido o fim do verão, e até interditei a praia, isolando o seu entorno afim de não deixar nenhuma brecha aberta para o perigo. Porque ninguém sabe o que um mar violento pode fazer com banhistas desavisados! Porém, após muito trabalho de reparação, o sol voltou a colorir meu mar de água salgada e até mesmo a areia ficou mais fina, leve como um sentimento apaziguado.
E foi aí que você retornou. Bem quando eu não pensava mais te ver por aqui. Que fazes em minha praia em pleno novembro? Ainda faz frio, a água está gelada. Mas, bem, isso é o de menos. Acontece que eu pensava que, para ti, aventurar-se em águas rebeldes era pensamento descartado. Sabe, você certamente conheceu novas orlas e até deve ter encontrado areia mais resoluta para fincar teu guarda-sol. Então, volto a questionar: o que você está fazendo aqui?
Como alegria de veraneio - a qual só se sente uma vez ao ano - surge a tua presença. Desta vez, meu mar está mais calmo e o sol brilha sem oferecer perigos. Então, por favor, fique a vontade. Mas antes prometa, prometa por favor, que não vou ter de lidar com mais trezentos e cinquenta e oito dias para voltar a te ver.


23 janeiro 2013

Barco de papel

Dobradura deu a forma
Do papel surgiu um barco
Resistente,
Nem foi preciso cola
Primeiro que não amasso

E quase nada
Nele depositei
Quiçá uma vírgula de esperança bem ali,
no convés
Esperei o vento, e aí
o larguei
Destino é aquele onde o cais estiver

Eis que foi lento
Navegando
Meu barquinho que pensava ser um navio
Mas que pena,
também foi-se enganando
O que imaginava ser mar
Na verdade era rio

Quisera eu tê-lo prendido a um carretel
Porque, no fim,
porto algum encontrou
Afogaram-se as esperanças, e
o meu barco de papel
No silêncio de um pôr do sol naufragou

19 janeiro 2013

Repertório

O cheiro era o de fritura que aterrissava nas mesas de cedro e provavelmente se apegaria às minhas roupas também. Gente, muita gente. Por todos os cantos. Acho que eu não gosto mais dessa multidão como antigamente. Desta vez, todos olhavam para os seus copos com gelo, para a presa logo ao lado, e sorriam como se aquela noite nunca fosse acabar. Para mim, ela estava durando mais do que eu poderia suportar.
No repertório da dupla que exalava frescor, as mesmas músicas que eu estava habituado nos últimos dias: um pouco a mais de drama, desta vez em notas musicais, não poderia acabar com mais nada. Ou poderia acabar comigo mesmo? Minha boca contraída observava aqueles olhos no canto do bar, os quais transpunham os meus como se passassem a mensagem: eu quero você. Mas você não quer um hálito de cachaça doce com morango e limão. Não, não. Você quer um único gosto de volta, aquele mesmo que, de tão inócuo, você mal sabe descrever. Mas ele não está ali.
Então a noite resolve sugar o que de melhor há em você, afim de que você sinta, a cada desgraçado segundo, o que você mesmo fez. Falta, acho que essa é a palavra. Como é detestável conhecer o significado de duas sílabas deste jeito... - vivenciando. A banqueta ao lado está vazia, e impetuosamente você imagina uma presença que, mesmo que pudesse, não estaria ali. Pois há gente, há muita gente. Mas ao mesmo tempo não há ninguém.
O que falta no repertório é o que você mais queria que tocasse.

16 janeiro 2013

Ka-boom!

É uma merda quando você ferra com tudo. 
Quer dizer, lá estão vocês dois, abraçados como se fossem gêmeos siameses, e os dois corpos se encaixam como em uma coincidência incrível. Vocês fingem assistir um filme, trocam beijos e riem, riem, riem. Até passam pela sua cabeça aqueles pensamentos cafonas de que você nunca viu um sorriso tão lindo, e que aquela presença te faz sentir completo. Brega como o amor. Brega e verdadeiro.
E, assustadoramente, tudo ocorre de modo impecável: até agora você não fez nada de errado. Certo que você não soube dizer qual era o nome de uma das músicas da sua banda preferida - isso faz com que eu perca pontos? Aliás, existem pontos? -, e você até mesmo se sentiu a pessoa mais lesada por ser romântica demais e entregar uma música que escreveu - a qual foi lida até a segunda linha e descartada.
Eis que você arranja um jeito de estragar aquela noite que andava muito bem, obrigado.
Sendo você a pessoa mais dramática desse mundinho cafajeste, é óbvio que nenhum 'eu te amo' ou 'se faltasse tempo para você, eu encontraria' consegue ser suficiente. Assim como as suas músicas, presentes, esperas, insistências, beijos e querência não foram. É claro que você, o maior idiota do mundo, vai encontrar uma palavra, um detalhe, qualquer coisa que foi dita sem muito pensar, escondida no meio de algumas frases quaisquer, e fazer disso uma tempestade.
Ka-boom!, chove onde há teto.
Por mais que a sua mente grite para que você pare e deixe de criar o que você mesmo sabe que está criando (e todas as consequências que acompanham), você está tentando parecer o que não é: corajoso, bravo, forte, irrevogável. Qual é, não tente ser isso exatamente quando a sua mente ordena para que você não faça drama. Pois você o está fazendo e, a cada passo, estragando tudo.
E aí batem-se portas, olhares se descruzam, o silêncio toma cena e a partida acontece.

Você chora (pois é você o dramático), você tenta mudar (ei, cortar o cabelo não é lá uma mudança!), você se sente sozinho no mundo (pois só restava uma pessoa mesmo, e você a afastou), você tenta fingir que consegue viver sozinho (más notícias: impossível), você não sabe se liga (não!), você não sabe se tenta se explicar (ei, você tentou isso inutilmente, lembra?), você não sabe se espera (talvez), ou se desiste (jamais!).
Não sabendo nada - aliás, você nunca soube, seu trouxa! - você apenas fecha a sua boca estúpida e promete a si mesmo nunca mais abri-la. Calma, respira. Pela primeira vez, então, como em um passe de mágica, você passa a ser, parcialmente, alguém racional. Isso! Está funcionando, continue!

Mas ainda chove onde há teto, e ainda há saudade onde existe você. No fim de tudo, você vai dormir implorando para a noite que seja lembrado quando aquele chá que vocês gostam for preparado, quando a série viciante de vocês dois for assistida, quando os presentes que você entregou forem remexidos, ou quando amor for o sentimento a triunfar no peito. Sim, você quer ser lembrado.
Porque o que você menos faz é deixar de lembrar.