30 março 2013

Você não sabia

Procurei entre rostos algum que se parecesse com você. Já havia lhe visto antes, de longe, então não teria dado tempo para que você fugisse. Olhei para cá, olhei para lá. Um bando de gente aglomerada, temperatura expressiva de um verão tão absurdo quanto os pensamentos em minha mente. E aí detrás de uma coluna você apareceu com aquele sorriso. Maldição, por que você trouxe ele consigo? Sempre soubemos que foi isso o que dificultou tudo na maioria das vezes. E, para completar, você riu. Fotografou mentalmente a minha cara de idiota por estar te procurando, sendo que você estava se escondendo de mim apenas para fazer graça. Aleguei ter te visto desde o princípio, mas quanto a isso era pura mentira.
Mentira... Assim como as vezes em que você esteve ao meu lado. Um belo e novo par para que os outros pudessem admirar. Eles acreditaram que eu havia ganho você para mim, pois isso até eu mesmo acreditei. Mas eles não sabiam, eu não sabia. Tudo era uma farsa. Naquele momento, antes mesmo de capturar o fragmento de ódio que escapou de meu interior, você utilizou esses braços antes tão bem-vindos para me abraçar. Cinco abraços seguidos que me fizeram girar em meio a tanta gente. Apertou-me com força, rindo da vida porque você tinha o total direito, afinal você não sabia o que eu havia descoberto. Então tudo aparentemente estava bem. Um encontro, cinco giros, um cumprimento depois de duas semanas sem se ver. E eu ali, querendo creer na veracidade daquele carinho, pretendendo acreditar que na verdade o errado era eu e a inocência era o seu nome do meio. Girei contigo, cambaleei entre nossas pernas, rodei no mesmo lugar como carrossel de criança. Tudo lindo, tudo nosso, tudo tão de faz-de-conta.
Aproveitando a minha ignorância, eu lhe paguei um refrigerante. Laranja, o meu preferido. Brinquei com palavras porque essa é a minha melhor qualidade, e enquanto isso você brincava com a minha estupidez, testando-a para ver até onde chegava. Houve um tempo antes disso em que eu corria atrás do amor, mesmo sabendo que essa é a maior das ignorâncias. Meu bem, eu corria atrás de você. Mas naquela hora era diferente. Eu passei a tentar correr de você. Sabia que isso não aconteceria, pois mesmo depois de tamanha decepção eu ainda continuaria ali. Olhando teu sorriso, guardando o teu perfume para os dias de ausência. Nunca foi fácil esquecer quem te ensinou a amar - mesmo que você não fizesse ideia de como fazê-lo. Então aproveitei o momento, pois era a primeira vez em que eu lhe conhecia de verdade. Muito prazer, quem é você?
Foi bom, ex amor. Gostei de lhe ter ao lado. Desta vez em um ineditismo estranho por não saber o que sentir. Amor ou ódio. Tudo ou nada. Optei, então, por um meio termo, onde o 'vou deixar isso para depois' me pareceu soar melhor. Você me enganou, mas por mim tudo bem. Crescer desse jeito sempre me tornou mais forte. E agora eu comando o jogo que você nunca terminou. Dito as regras, sou o dono disso aqui. Ganhei a autoridade porque você não sabia que eu sabia de tudo. Naquele fim de tarde, já haviam colocado um ponto final em nossas esperanças. O nosso amor já era história finalizada, coisa do dia anterior. E só você não sabia.

27 março 2013

Quero ser cremado

Quando eu morrer, ao meu corpo por favor ateiem fogo. Já que vou estar sem sangue nas veias, sem cor e gelado, em piedade eu peço para que, como um filhote abandonado que treme de frio, esquentem-me. Joguem fogo no meu cadáver, vamos lá! O mundo precisa de mais e mais praticidade. Acabem com todos os cuidados inúteis de beleza que cultivei durante anos, não entreguem nenhuma festa de bandeja para os vermes de um túmulo. Eu quero ser cremado.
Então nem inventem de me enfiar em um amadeirado luxuoso de 2 metros por 90! De jeito nenhum gastem com a minha exiguidade. Gastos com ausência só se for pra viajar - e desta vez a viagem é só de ida e sem escalas. Pensa só que terror ter que ficar deitado no mesmo lugar, imóvel, durante toda a morte. Que saco. Preciso andar por aí, não quero parar o meu descobrir nem mesmo no post mortem - até porque é na morte que se escondem as melhores descobertas. E Deus me livre ter que andar pelas esquinas de um cemitério toda noite! Maldita limitação!
Vejam bem: tem tanta gente morrendo que falta até espaço. Já não existe antro de sem-vidas que aloje um cadáver debaixo da terra. Nos empilharam, gaveta sobre gaveta. Arquivo literalmente morto. E, por isso, se não atenderem este meu apelo crítico-argumentativo, meu corpo então ficará lá, em um repouso tão inútil quanto o período entre a morte e a nova vida. Insisto: favor me incinerar. Afinal, quando morrer eu vou virar número mesmo. Vai estar no papel. Vou passar de vivo para morto - muda só uma palavra, muda só a situação, é só um carimbo. Favor então só providenciar o atestado de óbito. De resto, mais nada. Simples assim: me deixem no papel. Unicamente. Eu quero ficar no papel! Me deixem em forma de palavra. 'Morto'. Quero morrer e virar palavra, prosa e poesia. E não decomposição. A poesia em si nunca se decompõe.
Resumindo e sumindo, não quero lugar para visitas. Não um lugar fixo. Nem pensar! Visitem-me sempre, visitem-me em pensamento. Assim como uma nova organização religiosa sem recursos financeiros para edificar um templo que então resolve pregar a sentença de que Deus está em todo lugar. Todos os mortos estão. Pra que igreja? Pra que caixão? Não me deixem apodrecer! Cruz credo, me exterminem de uma vez!  Deixem o fogo consumir qualquer resquício de vida que tenha se aglomerado em algum canto do meu corpo distraído. Au revoir pra todos então. Pá! Virei pó.
Por fim, peço para que não pensem que estas palavras são bruscas. Brusca é a vida, não eu. Porém, quando eu morrer, ao meu corpo por favor ateiem fogo.

19 março 2013

Elevador


Desço pelos teus braços e recepcionas meu vazio nas costas de tuas mãos. Sorrio e suspiro. Faço fuzarca logo na porta de entrada. Subo um andar e tão pronto estou farejando teus ombros que, despidos como a carência em meu olhar, acomodam meu ser para uma reunião casual. Coisa rápida, mal discutimos as ações que caíram ou cairão. 
Eis que cai uma alça, desliza o vestido no corpo esguio e frio. Quem viu? Blecaute total na sala de jogos que rodeia teu umbigo. Assim nocauteio teu íntimo, e fujo descendo sem nem saber em qual andar o inferno está instalado. Quente. Pegando fogo. Nada literal, graças a Deus. Falta-me o ar ao alcançar o subsolo do teu edifício de um metro e setenta, escorrego a língua pelo Calcanhar de Aquiles que te sustenta. Pensar em rima nessa hora? Nem tenta!
De imediato me elevas e em um segundo estou no teu terraço. Os vales entre meus dedos interpolam-se nos teus fios loiros aperfumados de lavanda. Puxo-os com força, sufoco um grito na tua boca, arranho o arranha-céu. Aproveito e entro na porta localizada bem ao centro, saída de emergência em lugar estratégico onde jamais ninguém entrou. Olá, amor. 
Inunda-se o prédio num banho de realização. Descansa em silêncio o empreendimento bem sucedido. Outra vez dispenso as escadas, tomo o elevador. Agora nem sei para onde me deslocar, que botão apertar. Eu só sei que o teu corpo me leva pra todo lugar.

Abecê

De que vale
A minha poesia
Se você não ler
Ou entender

Eu a descartaria
E você riria
Ia preferir ver
Um programa de tevê

E aos poucos
Nessa vazia rotina
A gente perderia
Meu amor codificado em ABC

Então de que vale
Essa minha poesia
Se você não ler
Ou entender

Que nela
Esse frustrado poeta
Escondeu você

10 março 2013

Saiam da livraria

Metade do sábado já havia ido embora e eu estava em uma livraria, não que isso fosse novidade. Garimpando Chandler nestes bem pensados formatos pocket, eu curtia o silêncio de uma solidão acompanhada (tantos autores a minha volta não podiam ser ignorados). Eis que, ao imaginar se a minha estante comportaria mais um livro, ouvi barulho. Gritos.
Mas o quê?!
Uma trupe de seis adolescentes entrara pela porta bradando mais alto que escola de samba ao pisar na avenida. Três guris, três gurias. Todos jovens demais para formarem casais. De imediato pulei das páginas para me espatifar na realidade outra vez. Observei os seus caminhares por entre as gôndolas de livros desejando que não derrubassem nada. Tentei entender porque falavam tão alto sem me dar conta de que eles provavelmente não sabiam que, para um leitor, uma livraria é como uma igreja para um fiel. Então silêncio, por favor. E, mais importante, me perguntei: o que vocês estão fazendo aqui?!
Egoísmo, eu sei.
Logo eu, que sempre dividi os brinquedos e nunca deixei de compartilhar os pacotes de bolacha (com uma tremenda dor no coração). Eu, leitor e escritor, sendo egoísta o suficiente para não dividir os livros - quando deveria ser o contrário. Caso voltasse à metáfora celestial, a minha atitude seria o mesmo que o padre não querer distribuir a hóstia. Mas que feio. No entanto, por mais que tentasse me focar nas minhas futuras aquisições, na minha mente a frase gritada sem poder ser ouvida era só uma:
Saiam da livraria, saiam da livraria!
Mamãe diria para eu não ser egoísta. Papai diria que eu não devo julgar as pessoas. Ha-ha. Como não? Naquele momento já era tarde, pois eu olhava para todos como se fossem personagens de minhas histórias. Personagens secundários, é claro, os quais eu provavelmente não teria orgulho em criar. Isto até poderia soar deveras rude, caso uma das gurias não tivesse finalizado aquela visita sem sentido à livraria com uma frase em tom desdenhoso:
- Me dá esse de presente? - Segurava um clássico nas mãos. - Brincadeira, eu nem gosto de ler.
Enquanto observava aquele futuro indeterminado, assustador e triste enfim deixar o local junto de toda trupe, pensei comigo mesmo, egoísta que sou:
Ainda bem.

08 março 2013

Mulherando

Dizem por aí que eu sou complicada e perfeitinha. Complicada eu até que concordo de segunda a sexta, mas perfeitinha não. Nunca, nunquinha. Jamais! Até porque, me sobram dois pneuzinhos em cada lateral do corpo, o jeans tamanho 38 tá guardado no armário pra lembrar o tempo das vacas magras - literalmente! - e acho que, se fosse analisar bem, precisaria de umas duas injeções de botox. No mínimo, é claro.
Além disso, perfeita eu seria se tivesse uns centímetros a mais de altura, ou até mesmo se conseguisse não ter que correr tanto todos os dias. Pego o caçula no inglês, busco o mais velho no colégio, largo a tropa em casa e corro pra academia. Volto depois de uma hora, como pão integral e saladinha. Mas depois me bate aquela vontade de chocolate e eu dou um pulinho na cozinha sem ninguém perceber (todo mundo deve pensar que eu fico lavando a louça). Escondida - de todos e de mim mesma - belisco um pedaço da barra de Diamante Negro, mas logo perco o controle. E aí o caçula me vê, sai pela casa gritando 'lá vem a menstruação, lá vem a menstruação!'. Sim, eu ainda tenho que lidar com isso. Que dizer então da menopausa?
No fato de ser complicada, passei muito tempo tentando discordar. Quem, eu? Complicada? Imagina, meu bem. Eu sou a pessoa mais fácil de se compreender no mundo! Eu só não gosto de ser contrariada. Eu uso sapato da marca tal só porque são mais confortáveis, as bolsas são daquelas do nome composto porque duram mais, isso é óbvio. E nem venha me falar que eu só vou no banheiro com uma amiga por perto, porque isso é coisa de mulher e você nem precisa entender. Mas hoje em dia, me achando meio figurante do Parque dos Dinossauros, eu até que concordo. Sou complicada, difícil de se compreender. Isso no bom sentido, é claro. Até porque, qualquer mulher que se preze é misteriosa.
Disseram por aí há alguns anos que eu não era mais menina, e que então eu era uma mulher. Achei tão legal, sabe, essa coisa de ser madura e não mais uma menininha. Eu sou adulta já, olha pra mim! Em compensação, agora, anos depois, dou um abraço bem apertado em qualquer um que venha me dizer: 'nossa, você tá tão jovem'. E aí, meu Deus?! Como faz pra ser menininha de novo? Que merda! Ai, eu disse palavrão. Merda. Merda! Mulher também diz merda. 
Esses dias meu marido até disse que eu estava mulherando demais. Mulherando?! Como assim? O que você quis dizer com mulherando? Não me chama de mulher não, porque sou eu quem coordena essa casa. Trabalho 40 horas por semana, ajudo o caçula a fazer tarefa, e ainda cuido das namoradas do mais velho - uma nora de boa família, por favor. Passo no supermercado no fim do dia e no horário do almoço faço pilates. Quanto ao fim de semana, bem... Eu ainda tenho que lavar roupa, passar e limpar a casa. Então não vem me dizer que eu estou mulherando porque isso eu não aceito. Afinal, eu não sou nenhuma mulherzinha.
Cá entre nós, eu sou um puta dum mulherão.