13 agosto 2013

Um daqueles dias

Hoje é só mais um daqueles dias em que nada se move. A meu ver, o mundo freou por estar cansado da gente. Tudo então está quieto, tudo acabou se tornando refém. Do tempo, dos tempos. De si mesmo.
Lá fora o céu não ganha cor nenhuma, a chuva martela sobre tudo aquilo que está estático - e a essa hora podemos contabilizar aqui as pessoas também. As árvores são as únicas que dançam, obrigadas por um vento carrasco que resolveu castigar todos nós. No relógio os ponteiros não passam, o telefone não toca, a caneta escreve só isto e aquela pessoa não aparece para salvar o dia. Nos livros as linhas estão embaralhadas, mas os olhos são os reais culpados: pendem para baixo, estão em desordem, enxergam o pouco-tão-pouco que, mesmo sendo pouco, alguém esqueceu de arrumar. Quanta bagunça.
Nos ares, os ares são artificiais. Aquecedores são mantas invisíveis para proteger os desprotegidos. Nos pés, o piso é frio. Cada passo no chão despido despe a alma que no dia de hoje se despede - Despedida! Como não falar dela em um dia como hoje, quando todos estão indo embora sem nem mesmo terem chegado? Por favor, fiquem um pouco mais. O café vai voltar a pingar na xícara quando o mundo estiver de volta ao normal. Ah... O normal. Qual é a engrenagem que mantém o mundo preso naquilo que agora chamo de diferente? Pois eu deveria gostar dele.
Mas não gosto. Não desse diferente.
Não gosto porque hoje ninguém apareceu a não ser a chuva e o que imperou foi o sono, sem falar da tristeza pela ausência que nunca esteve tão presente - quanta bondade a sua, fiel companheira. A trilha sonora hoje foi o tique-taque, um desfalque de meu próprio piripaque por estar vivendo bem assim. Hoje foi um daqueles dias em que encontrei nas ruas, encrostada em paredes nuas, esta falta de não-sei-o-que-lá. Convivi hoje, então, com uma "terça-feia", tão feia que nem quis ver pela frente. Não quis porque no dia de hoje, simplesmente, todas as bocas ficaram mudas.

Ainda bem que me resta a escrita.

12 agosto 2013

Entre caixas e caixões

Ela tirou do armário uma grande caixa que guardava uma bota da cor preta. Abriu a tampa, analisou o papel seda que envolvia o forte cheiro do couro impregnado no sapato. Pensou, avaliando consigo mesma o tamanho da caixa. Era grande, talvez 80 centímetros fossem demais para o que ela precisasse. Voltou a olhar para o armário. Haviam várias caixas menores ali que poderiam servir. Entre caixas e caixões, ela optou por uma caixinha.
E nem era tão caixinha assim, pois dentro dela cabia um par de sandálias horríveis que nunca antes havia usado - tinha sido presente dele, é claro. Jogou então a caixa em cima de sua cama, abriu a tampa e encarou aquele quadrado de papelão como se esperasse por uma resposta. Em silêncio, ela soube que dali não sairia mais nada. Nem tinha o que sair. Então, como que dizendo para si "eu realmente preciso fazer isso", ela começou: jogou uma montoeira de coisas ali dentro. Era como se a caixa ansiasse em receber qualquer donativo de uma partida súbita. Dentre os itens escolhidos, cuidou para não resvalar e deixar a si mesma cair lá dentro.
Primeiro foi a escova de dentes que ela havia comprado especialmente para ele usar nas noites em que dormisse na sua casa. Era amarela, e sem qualquer esforço ela lembrava que não havia sido uma boa escolha: as cerdas eram duras demais. E, sim, ela já havia escovado os dentes com a escova dele, óbvio - início de paixonite, sabe como é. Logo depois ela arremessou um CD do Legião Urbana, e por cinco ou dez minutos ficou pedindo perdão para Renato Russo, que naquelas horas de nada tinha a ver com a história, por mais que tivesse embalado alguns (des)encontros do casal. Outros itens acabaram por cair na caixa de sapatos sem tanta dificuldade: o primeiro anel; a carta exageradamente inflamada que ela escrevera para nunca entregar; o botão da calça jeans que ela arrancou quando o conheceu por completo pela primeira vez. "Tudo tralha", pensou.
Tampou a caixa depois de um par de horas. Lacrou com fita adesiva e uma trouxinha de lágrimas que acabou despencando daqueles olhos de abandono. Bem ao certo não sabia o que fazer, porém ao mesmo passo sabia o que não deveria fazer: devolver tudo aquilo. A caixa guardava memórias suas, momentos escolhidos e salvos unicamente por ela. E, bem, ela sabia que o que menos precisava era de um reencontro. Entre caixas e caixões, ela escolheu o último e preferiu de uma vez enterrá-lo.

07 agosto 2013

Toda mulher

Toda mulher tem que cortar o cabelo bem curto em algum momento da sua vida. Tem de haver um desprendimento, uma renovação, um bota fora. Toda mulher tem que se permitir um penteado diferente, uma cor ousada – do vermelho fogo ao loiro desbotado –, uma espécie de licença poética mesmo que seja apenas capilar: "hoje eu me permiti ser outra pessoa".
Toda mulher precisa de um disfarce que só ela saiba que existe. Pode ser de mulher fatal, dominadora, compulsiva ou até mesmo controladora - o personagem só aparece quando ela quiser. Toda mulher, aliás, deve precisar de uma outra mulher, seja irmã, mãe, prima ou até mesmo empregada doméstica. Toda mulher precisa de vários "amores da minha vida", mas só um anel de compromisso. Toda mulher deveria experimentar um esmalte diferente a cada nova ida à manicure, fugir do pretinho básico de vez em quando e beijar quem tiver vontade, sem precisar imaginar se o cara é um sapo a ponto de virar príncipe ou não.
Na verdade, toda mulher tem que ter em sua vida um homem cafajeste. Mas que ele não dure muito, por favor! Que todas tenham um "homem caminhão de mudança", daqueles que recolhe os espaços vagos e inúteis e leva embora - junto consigo, é claro. Toda mulher tem que conviver também com um homem de bolso vazio, pois essa é uma boa forma de se valorizar o próprio dinheiro (afinal, depender de homem ninguém merece). Também é aconselhável que toda mulher tenha um romance com um cara mais novo, um jovenzinho de 18 quando ela tiver 30, ou um de 20 e poucos quando ela já estiver na casa dos 40. Nisso pode existir um resgate, e até mesmo uma confirmação de que nunca é tarde para se fazer as tais "coisas dos jovens". Afinal, ser mulher é ser atemporal.
Toda mulher deve ir dormir uma vez na vida sem se preocupar com a louça suja na pia da cozinha e no dia seguinte sair de casa sem arrumar a cama. Toda mulher tem de arriscar uma hora ou outra - seja investindo grana em um negócio próprio ou apenas mudando o pão integral pelo francês uma só vez na semana. Falando nisso, toda mulher deveria esquecer a palavra "dieta" semana sim, semana não. Dessa forma dosadora surge um perfeito equilíbrio, não?
Toda mulher deve esperar flores. Toda mulher deve fazer algo para que possa esperar flores.
Toda mulher deve sair para se divertir com as amigas, toda mulher tem de ter um amigo gay. Toda mulher tem que ser mais corajosa que o "homem da casa", toda mulher tem direito de não gostar de rosa e filme de romance. Toda mulher tem "aqueles dias", então, por favor, afaste-se! Toda mulher tem um sapato a mais no guarda-roupa, um batom de cada tom e alguma peça no armário na cor nude (e nem tente imaginar do que isso se trata). Toda mulher deve querer alguém, mas toda mulher tem que lembrar que é autossuficiente e que Adão foi mero reprodutor sexual figurante.
Toda mulher, enfim, tem que se permitir, se libertar, tentar algo de diferente. E isso só começa com o principal: em algum momento da sua vida, toda mulher deveria cortar o cabelo bem curto.
E olha que eu nem sou mulher para estar afirmando.