21 julho 2013

Pertença

No céu, um rasgo discreto salvava o dia de uma palidez bem-vinda. Como se quisesse mostrar presença, o sol se espremia e ultrapassava o rombo celeste no intuito de alcançar o topo dos montes que cercavam a estrada de fim de domingo. Naufragados noutro mundo que não aquele, meus pensamentos tentavam dar nome às emoções. Em meio a um crepúsculo não planejado na volta para casa, eu pertencia.
No som, Maria Bethânia estava fazendo pirraça com o meu destino. Travestida de poetisa, seus versos me serviam: "Olha, você tem todas as coisas que um dia eu sonhei pra mim". Sim... Olho, Maria, eu olho. Eu olhei. E, no banco de trás, o que encontrei foram os meus dedos fazendo pouso forçado noutra mão, achegando-se e enlaçando noutros dedos. Trocaram-se sorrisos após o pouso de emergência, trocaram-se certezas de um já conhecido sentimento, porém ainda sem nome. Como colônia fina sem embalagem, mas que sabe exatamente que pertence à ala da perfumaria. É, o meu lugar é aqui.
No sul, o vento frio ditava o tom do nosso romance regado à chocolate mentolado e por vezes cítrico. Mas que graça é essa questão que me sequestrou o peito e sufocou-o com uma nova descoberta, então. Quem és tu, pertença? Pois bem, agora sei, e muito bem lhes explico: Pertencer é encontrar-se. É, diferente do que se pensa, estar em movimento. A autêntica pertença é aquela que está tão enraizada que, mesmo quando o velocímetro marca 67 quilômetros por hora, ela continua a existir. É uma pertença nomadista, formada por pequenos até logo, até amanhã. Mas é uma pertença sempre reencontrada. 
No céu, no som e no sul, pertencer é, enfim, - parafraseando novamente Bethânia - viver a vida só de amor.

17 julho 2013

A autossuficiência dos mais fracos

Noite passada a luz da geladeira queimou. Não que isso seja lá um grande acontecimento, mas a gente só percebe a importância das pequenas coisas (e isso inclui a bendita luz da geladeira) quando elas vão embora (ou, no caso, queimam). Em meio a escuridão que inundou meu ketchup e o resto de pizza, quase liguei para um técnico, e, depois, também pensei em um eletricista, pois eu não fazia ideia de quem deveria se responsabilizar em uma hora como aquela. Digo, não existe profissão para isso, ninguém se gradua para trocar a luz da geladeira. Na dúvida, acabei chamando o meu pai.
Hoje pela manhã acordei melhor: a luz da geladeira estava consertada. Mas pai! Não precisava ter pressa - até porque durante o dia aquela luzinha é tão inútil. Entretanto, agradeci o favor e me lembrei de que, enquanto ele realizava o conserto, eu estava assistindo o último episódio de Dexter. Lá longe, no quarto. Onde quero chegar: eu não acompanhei o processo todo para saber como se conserta uma luz de geladeira. E se ela queimar outra vez?!
Enquanto o personagem da série de tevê assassinava um par de sujeitos, virei o rosto para o outro lado da cama. Vazia. Maldita insuficiência que me faz pensar que cabe mais alguém - sempre cabe. Não, não, logo pensei. Chega disso! É hora de ser autossuficiente. Se o objetivo é morar sozinho, pelo menos uma luz de geladeira eu devo saber consertar. Se todos os dias não podem ser dia dos namorados, que ao menos nos outros dias eu saiba me portar bem comigo mesmo.
Comigo mesmo? Mas eu nunca fui muito com a minha cara!
Fui para o banheiro, dei uma rápida olhada no espelho. Oi, muito prazer. Blergh, tchau. A sua cara eu vejo todo dia e já enjoei. Sentei na frente do computador, então. Rolei os olhos pelos nomes e mais nomes de pessoas que poderiam me ajudar - dentre tantas, convenhamos, alguma haveria de me ensinar a ser autossuficiente. Mas, ei! Espera. Ser autossuficiente a partir de um conselho? Quer dizer, a partir da ajuda de um segundo sujeito? Isso não é autossuficiência coisa nenhuma, para começo de conversa!
Voltei para a cama e atraquei minhas tentativas. Tipo, deixa pra lá. Talvez isso nem mesmo seja um índice de auto-insuficiência (se essa palavra existir). Quem sabe isso tudo não passa de um desdobramento da minha carência. Ah, sim, porque ela existe pra valer. Sabe, talvez fosse só vontade de ver o meu pai e talvez fosse só saudade de me sentir completo com o meu amor de uma vida toda na mesma cama que eu. Até porque eu já sei fazer a minha própria comida, pago as minhas próprias contas e também lido com as minhas próprias consequências. Qual é, eu sou um "autorazoável" de primeira!
Então, da próxima vez que a luz da geladeira queimar, eu já sei quem chamar.
- Alô, pai?

Calma!
É só saudade.