27 março 2013

Quero ser cremado

Quando eu morrer, ao meu corpo por favor ateiem fogo. Já que vou estar sem sangue nas veias, sem cor e gelado, em piedade eu peço para que, como um filhote abandonado que treme de frio, esquentem-me. Joguem fogo no meu cadáver, vamos lá! O mundo precisa de mais e mais praticidade. Acabem com todos os cuidados inúteis de beleza que cultivei durante anos, não entreguem nenhuma festa de bandeja para os vermes de um túmulo. Eu quero ser cremado.
Então nem inventem de me enfiar em um amadeirado luxuoso de 2 metros por 90! De jeito nenhum gastem com a minha exiguidade. Gastos com ausência só se for pra viajar - e desta vez a viagem é só de ida e sem escalas. Pensa só que terror ter que ficar deitado no mesmo lugar, imóvel, durante toda a morte. Que saco. Preciso andar por aí, não quero parar o meu descobrir nem mesmo no post mortem - até porque é na morte que se escondem as melhores descobertas. E Deus me livre ter que andar pelas esquinas de um cemitério toda noite! Maldita limitação!
Vejam bem: tem tanta gente morrendo que falta até espaço. Já não existe antro de sem-vidas que aloje um cadáver debaixo da terra. Nos empilharam, gaveta sobre gaveta. Arquivo literalmente morto. E, por isso, se não atenderem este meu apelo crítico-argumentativo, meu corpo então ficará lá, em um repouso tão inútil quanto o período entre a morte e a nova vida. Insisto: favor me incinerar. Afinal, quando morrer eu vou virar número mesmo. Vai estar no papel. Vou passar de vivo para morto - muda só uma palavra, muda só a situação, é só um carimbo. Favor então só providenciar o atestado de óbito. De resto, mais nada. Simples assim: me deixem no papel. Unicamente. Eu quero ficar no papel! Me deixem em forma de palavra. 'Morto'. Quero morrer e virar palavra, prosa e poesia. E não decomposição. A poesia em si nunca se decompõe.
Resumindo e sumindo, não quero lugar para visitas. Não um lugar fixo. Nem pensar! Visitem-me sempre, visitem-me em pensamento. Assim como uma nova organização religiosa sem recursos financeiros para edificar um templo que então resolve pregar a sentença de que Deus está em todo lugar. Todos os mortos estão. Pra que igreja? Pra que caixão? Não me deixem apodrecer! Cruz credo, me exterminem de uma vez!  Deixem o fogo consumir qualquer resquício de vida que tenha se aglomerado em algum canto do meu corpo distraído. Au revoir pra todos então. Pá! Virei pó.
Por fim, peço para que não pensem que estas palavras são bruscas. Brusca é a vida, não eu. Porém, quando eu morrer, ao meu corpo por favor ateiem fogo.

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