01 junho 2012

Varrendo a estação

O dia nasce na vidraça do prédio vizinho. Sol bate na janela, perfura e adentra exclamando bom dia, mas ninguém vê. Meia dúzia de mendigos, até então os donos das ruas, recebem os mesmos visitantes de sempre: robôs programados a não sentir que estão em ótimo estado de operação. A única coisa que sentem, no entanto, é que hoje faz 11º graus e não mais 22º. A temperatura caiu, assim como a falta de escrúpulos para com as coisas simples.
No rádio aquela mesma voz de sempre relata os fatos da noite. Três mortes em bairros afastados, um pequeno furto no centro - pois lá existe vigilância, é claro. Enquanto isso, semáforo vermelho. A mesma cor que pinta o pano que nos cobre. Tons alaranjados matizam a manhã transfigurada* não só de Miguel e Cecília, e sim a de todos nós. Quem foi mesmo que disse que o céu não pode ser multicolorido? Essa é apenas uma questão lógica para os bons observadores.
Mas hoje pouco importa, porque hoje é sexta-feira. Foi uma semana abarrotada para ti, mas lembre-se que da mesma eu também vivi. E para mim ela foi tão boa. Tudo bem, hoje é dia de recompensa, porém nada me impede de que todos os dias sejam uma sexta-feira. Assim como as vestes de nosso corpo caem de moda,  o pensamento ancestral de que devemos basear-se em uma rotina também deve cair. Ontem era terça e no bar ao lado de minha casa tocava uma banda nova deveras promissora. Na quarta passava futebol na tevê, mas alguns canais depois vinha o teu filme favorito. E tu nem mesmo sabias. Tudo porque não era sexta-feira.
Agradáveis exceções rejeitam as quatro rodas e se movem com apenas duas. Mas ainda há um erro: as bicicletas circulam nos parques, em um mesmo circuito de uma paisagem só, repetidamente, quando deveriam estar nas avenidas. E, por falar em parque, um grupo de garis varrem as folhas das árvores que caíram ao chão. O outono chegou, mas deste jeito já vai embora. Não há sinal das folhas secas que o caracterizam, pois a prefeitura impõe que varram a estação. Assim, esconde-se em sacos plásticos pretos o que deveria estar nos gramados. A beleza simplista hoje já não tem relevância.
Quando cai a noite ninguém mais se esconde. É frio, é outono (só sei porque está no jornal), mas lembre-se que já é final de semana - o momento perfeito para qualquer fuga de realidade pessoal. Sabe que a noite até que ganha mais brilho desta maneira? Até porque surgem sorrisos que estiveram escondidos durante aqueles longos cinco dias. Porém, não tarda para que regresse a segunda-feira, e lá está o individualismo perambulando pelas ruas novamente. Resta saber quem varrerá a neve quando o inverno chegar.

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*Manhã transfigurada - obra de Luís Antônio de Assis Brasil, que tem Miguel e Cecília como protagonistas, publicada em 1982.

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